Seria a inflação no Brasil uma barbeiragem de política monetária?
Voltando para a linha da discussao de conjuntura, hoje resolvi escrever um pouco sobre a situacao atípica da alta dos precos na economia brasileira. De onde ela veio, o que ela significa e o que podemos esperar para 2022.
Neste blog, eu apresentei alguns posts que fundamentavam a visao de mercado da época, hoje conhecidamente equivocada, de que o ciclo inflacionário brasileiro se encerraria somente pouco acima da meta de inflacao. Os dados de julho hoje mostram a inflacao em 9% ao ano, ainda em aceleracao, em virtude de uma série de choques que se acumularam entre este ano e o ano passado. Sem nenhum peso na consciencia de dizer que minhas projecoes nao se concretizaram, aproveito o post para explicar a razao do erro e pontuar o que realmente aconteceu para a inflacao acelerar este ano. Spoiler: Há poucas razoes para crer que a culpa é da política monetária.
Parte I — Inflação importada
Apesar dos seus múltiplos choques na oferta de trabalho, nas cadeias de producao e na demanda global, a crise do Covid-19 trouxe efeitos líquidos negativos sobre a demanda. Isso significa que o choque ampliou o hiato do produto negativo herdado no pré-pandemia, apesar das contrapartidas sanitárias que impediram milhoes de pessoas de trabalhar.
Este foi o diagnóstico dos policymakers de diversos países, e foi corroborado pelo momento desinflacionário observado no primeiro semestre de 2020 para a maior parte do mundo. No Brasil, essa desinflacao teve vida mais curta por razoes domésticas e externas, que vou detalhar aqui.
A 9% no acumulado dos 12 meses até julho, a inflacao brasileira hoje se encontra aproximadamente 5.8pp acima daquela que era prevista pelo mercado brasileiro 12 meses atrás para este mesmo mes, uma enorme frustracao para cima. Em magnitude, provavelmente a maior dentre os países que possuem metas de inflacao neste momento.
Por outro lado, a tendencia inflacionária, mesmo que de menor magnitude, é percebida em diversos outros países. Em uma amostra 20 países, 18 deles já observam inflacao acima da sua meta, todos ainda em tendencia de alta.
Essa surpresa inflacionária é comum a vários países, inclusive naqueles que fizeram uma política monetária bem menos expansionista do que o Brasil, como Chile, Russia, India, e até mesmo em países que nao fizeram política fiscal alguma para suavizar a crise da pandemia, como o México.
Por que será que países que fizeram políticas monetárias de diferentes intensidades em 2020 estao vendo impactos de direcao tao parecida em sua inflacao hoje? Essa pergunta retórica vale uma reflexao guiada por mais dados.
Um ingrediente bastante comum de períodos inflacionários em países emergentes é o ciclo de commodities, sobretudo do petróleo. Este produto desde 2017 guarda uma forte relacao com a inflacao e a taxa de cambio brasileira. O efeito sobre a inflacao é difuso, pois é composto por um fator direto e um indireto, com sinais tipicamente concorrentes.
O fator direto é quando um aumento do preco do barril aumenta o custo dos derivados do petróleo, a gasolina, o diesel e o gás de cozinha, por exemplo. O fator indireto é quando o preco do petroleo surge associado a uma apreciacao da taxa de cambio brasileira, barateando em parte o preco de insumos importados. O efeito direto aumenta a inflacao, o efeito indireto a reduz. As magnitudes de cada um desses efeitos muda com o tempo.
Como em 2015, o barateamento do preco do barril de alguma forma acomodou parte do choque inflacionário causado pela maxidesvalorizacao do real no momento da crise. Entretanto, na crise do Covid-19, o timing foi bem diferente: o choque do petróleo se dissipou antes que o cambio brasileiro pudesse se recuperar, nos deixando, já em 2021, com um preco de barril em R$ constantes atingindo seu nível recorde dos últimos 10 anos:
Naturalmente, esse efeito afetou a gasolina fortemente em 2021, em que se observou os maiores aumentos consecutivos desde que a Petrobras mudou sua política de precos.
Explicar o canal da gasolina para o resto da inflacao na teoria é fácil, mas difícil de medir na prática. Os dados que a pesquisa do IPCA/IBGE nos oferece sao os pesos dos bens enquanto bens finais, e nao é nada simples depurarmos desses precos finais os custos da gasolina/diesel enquanto insumo no processo produtivo e de transporte de cada um deles. Somente nos resta acreditar neste canal intuitivo de transmissao, que tem toda a cara de ser nao-linear, dado que afeta a producao ótima no lado das firmas.
Para fechar essa questao externa que traz bastante relacao com o petróleo e a taxa de cambio, quero apresentar um último gráfico para reforcar outro ponto que já fiz aqui no blog, onde mostro que a taxa Selic tem pouca contribuicao na depreciacao cambial de 2020. Este é o gráfico:
Vemos que, por mais fundamental que seja a relacao na qual os modelos neokeynesianos se apoiam para explicar o comportamento das moedas, via de regra é muito difícil encontrar correspondencia forte nos movimentos do cambio olhando somente a rentabilidade dos títulos de cada país. Isso inclusive vale para 2021, uma vez que o Brasil está fazendo a normalizacao monetária mais veloz dos últimos 10 anos (+500bps em um ano), enquanto o real simplesmente nao apreciou nada até agora. O juro que supostamente valeu para o ano passado já nao vale mais para esse ano.
Parte II — Inflação doméstica
Além do que já foi dito sobre a inflacao advinda do petróleo e da taxa de cambio, há bastante a se falar sobre uma outra fonte de inflacao de custos (portanto de oferta) de origem doméstica. Essa inflacao que veio das tarifas de energia elétrica.
Devido a forte seca neste ano causada pela extensao da La Niña (o menor volume de chuvas em quase um século), os reservatórios das represas de usinas hidrelétricas no país constrangiram fortemente sua capacidade produtiva. O salto da bandeira tarifária por si só traz um efeito muito semelhante em comportamento, apesar de menor magnitude, do petróleo enquanto insumo essencial no país.
Além disso, há um agravante de que a falta de chuvas traz efeitos fortes sobre o preco de produtos agrícolas, sendo o mais emblemático deles a soja, e consequentemente a carne, que tem um grande peso na cesta do consumidor brasileiro. Vale a pena ilustrar isso em dois gráficos:
Depurando somente os efeitos diretos da variacao do IPCA até julho, observamos que aproximadamente 60% dela é oriunda do preco final dos bens explicitados, fortemente sensíveis ao choque de oferta que vimos em 2020–21. Desconsiderando somente estes efeitos diretos, vemos que a inflacao ainda assim segue acelerando na margem, mas nao está, nem de longe, descontrolada.
Lembrando que os itens restantes podem perfeitamente estar poluídos pelos efeitos indiretos que mencionamos anteriormente. O efeito da inflacao de custos no Brasil hoje é largamente superior a um possível efeito de demanda.
Isso significa dizer que os largos estímulos fiscais e monetários de 2020 nao contribuíram para a inflacao? Nao. Provavelmente sem eles a inflacao dos itens restantes teria sido muito mais baixa, compensando uma maior fatia da inflacao de custos advinda dos choques de oferta. A contribuicao da parte que sobrou, entretanto, sequer é suficiente para levar a inflacao a exceder o centro da meta do banco central deste ano (3.71% vs. os 3.75% da meta de 2021).
Parte III — E daí? A inflação já está alta agora, o que o banco central deveria ter feito e deverá fazer?
Há uma maneira mais “educada” de se entender como deveria agir um banco central do que simplesmente associar desvios em relacao ao piso ou teto da meta de inflacao como evidencias de má conducao da política monetária. Essa maneira é apresentando uma regra de política monetária que julgue de forma imparcial momentos passados com momentos atuais.
Já falamos aqui neste blog sobre a Regra de Taylor, uma maneira de projetar a atuacao de um banco central de acordo com respostas estimadas/calibradas dos juros em relacao ao desvio da inflacao em relacao a sua meta e ao desvio do produto em relacao ao seu potencial teórico. Na ocasiao do post, usei econometria para estimar essa equacao, que serve perfeitamente este propósito aqui.
Usando a equacao 7 do post, percebemos que a atuacao recente do banco central tem sido bastante em linha com os betas estimados no histórico entre 2008 e 2021T1:
O gráfico, muito mais do que somente oferecer uma projecao da taxa Selic, ilustra de forma bastante clara como o banco central atuou de maneira razoavelmente previsível no ano de 2020–21. As decisoes da política monetária foram acima de tudo em linha com as respostas estimadas por uma Regra de Taylor, deixando pouca margem para o argumento de que houve discricionariedade por parte da sua diretoria.
Para o futuro, espera-se que os efeitos do lado da oferta se dissipem. Com alguma normalizacao climática, com volta do nível de chuvas, a retomada na producao de barris de petróleo (fato que está hoje implícito pelos precos no mercado futuro do brent), e uma inevitável resposta de aperto monetário já contratada (Selic prevista para 8% em 2022, mas de acordo com a Regra de Taylor poderia facilmente ir a 9%), será inevitável a inflacao responder com uma desaceleracao gradual.
Pelas minhas projecoes hoje atualizadas, a inflacao ainda excederia a meta ano que vem, mas convergiria próxima ao centro dela em 2023. Por outro lado, com a corrida eleitoral em 2022 e um risco de novo choque cambial ao fim do ano, há riscos altistas para essas projecoes.
O post de hoje foi um tanto mais detalhado do que o comum, mas enderecar este tema nao deixou escolha. Farei a gentileza de sumarizar os pontos principais deste texto aqui:
- A inflacao superou as expectativas no Brasil muito mais do que superou as expectativas em outros países com metas de inflacao até agora, apesar disso, o ciclo inflacionário já é um fato no mundo inteiro.
- Os principais vetores que causaram a aceleracao da inflacao vieram de choques de oferta: rápida recuperacao do preco do petróleo, lenta recuperacao da taxa de cambio brasileira, que encarecem a gasolina, o gás de cozinha e o custo dos servicos de frete no país. Além disso uma das maiores secas do século afetou fortemente o preco de alimentos representativos da cesta do consumidor, além das tarifas de eletricidade dos domicílios e empresas.
- O banco central cortou juros de maneira esperada, e subiu de maneira esperada também, de acordo com uma regra de política monetária seminal estimada de 2008 até 2021T1. Há pouca margem para se argumentar alguma discricionariedade em qualquer direcao por parte da atual diretoria do BCB.
- A inflacao provavelmente desacelerará de forma bastante gradual, somente chegando próxima da meta ao fim de 2023, isso sem considerar um potencial choque cambial em 2022 em virtude da incerteza eleitoral.
Por hoje fico por aqui.