Revisitando a política monetária brasileira através da Regra de Taylor

Felipe Camargo
11 min readJun 12, 2021

Nesta entrada do blog, cobrirei um assunto que passou relativamente batido no meu conteúdo até agora, que é a política monetária. A ideia deste post é explorar os diversos angulos da Regra de Taylor, uma simples regra de movimento para a taxa de juros básica decidida pelos bancos centrais que oferece previsibilidade ao mercado e estabilidade macro aos agentes de política economica.

A Regra de Taylor tem como princípio a ponderacao da taxa de juros básica entre tres principais componentes: a taxa de juros de equilíbrio (também conhecida como juro neutro ou juro ‘natural’, falaremos dela melhor mais pra frente), os desvios da inflacao em relacao a meta estabelecida pelos conselhos monetários de cada país aos seus respectivos bancos centrais e, por último, o ciclo economico.

Existem diversas formas de incorporar estes tres principais fatores em uma regra de movimento, para o texto de hoje tentarei explorar sete diferentes formas de se fazer isso para o Brasil, indo de uma especificacao mais simples a uma mais estruturada.

Especificacao 1 — Regra de Taylor simples

Eq. 1, Regra de Taylor em sua formulacao mais rústica

Nesta Regra de Taylor, descrevo a taxa básica brasileira Selic como funcao de duas principais variáveis, os desvios da inflacao em relacao a meta, descritos por π e π_meta, e uma medida de ciclo economico medida através do hiato do produto (do qual ja tratamos em detalhe aqui neste blog). Os coeficientes beta podem ser calibrados ao sabor do fregues ou estimados para refletir o comportamento de um banco central específico. A taxa de juros neutra é capturada pelo coeficiente β0, que seria exatamente o valor resultado da Selic estimada quando a inflacao fosse exatamente igual a meta e a economia atingisse o pleno emprego.

Especificacao 2 — Regra de Taylor com funcao-resposta do banco central

Eq. 2, Regra de Taylor com coeficientes de suavizacao para capturar a velocidade que os bancos centrais perseguem a taxa de juros recomendada pela regra de política monetária

Nesta segunda especificacao, trazemos um pouco mais de estrutura para a Regra de Taylor ao incluirmos coeficientes autorregressivos gama na equacao. O papel destes coeficientes é oferecer uma medida de suavizacao para o tempo de resposta da diretoria do banco central.

Em situacoes da vida real, banqueiros centrais sao agentes que atuam como estabilizadores do ciclo economico, seu papel portanto requer cautela para poder oferecer uma convergencia das previsoes do mercado em relacao a meta de inflacao e ao ciclo economico. Olhando do presente, muitas vezes é difícil de se diagnosticar a necessidade de uma mudanca na taxa básica de juros que só vai afetar a economia em uma janela de 6 a 24 meses a frente, usando muitas vezes variáveis nao-observáveis como norte que só sao mais facilmente observáveis olhando para trás. Atuar de forma “imperfeita” em relacao a Regra de Taylor é inevitável, e os componentes de suavizacao sao úteis para capturar o grau de incerteza da economia em um determinado momento no tempo.

Via de regra, a quantidade de coeficientes gama é escolhida de forma a satisfazer certas propriedades econométricas desejáveis, por exemplo eliminar autocorrelacao de resíduos de uma regressao para estimar os coeficientes da especificacao, ou até mesmo minimizar critérios de informacao que permitam equilibrar eficiencia preditiva com quantidade de parametros estimados. Para garantir uma convergencia na regra de movimento, a soma dos coeficientes gama precisa ser inferior a 1, da mesma forma que em qualquer outro processo de série de tempo autoregressivo.

Especificacao 3 — Regra de Taylor com funcao-resposta do banco central e núcleo de inflacao

Eq. 3, aqui somente substituímos o π original por π_nucleo

Nesta versao, nenhuma nova estrutura foi adicionada a nossa regra de movimento da taxa básica de juros, apenas uma mudanca a respeito de qual medida da inflacao deve ser usada. Nesta especificacao, utilizamos o núcleo de inflacao ao invés da inflacao corrente.

A discussao que se dá entre usar o núcleo de inflacao ou a inflacao corrente em uma Regra de Taylor faz bastante sentido. Isso acontece porque a inflacao oficial de qualquer país tende a ser medida como uma média ponderada da cesta do consumidor final, isto é, quanto cada uma das famílias em uma economia alocam da sua renda em alimentos, aluguel, servicos domiciliares básicos, transporte, comunicacao, etc.

O comportamento de alguns dos itens da cesta representativa do consumidor tende a ser bastante heterogeneo, uns respondem consideravelmente bem ao mercado de credito e portanto as taxas de juros da economia, como financiamentos imobiliarios e de compra de veículos. Já outros, como alimentos frescos que dependem de safras agrícolas ou contas de energia que dependem de condicoes climáticas, como no Brasil, nem tanto.

Ao separar medidas de inflacao, o banqueiro central tenta portanto observar somente os componentes que ele tem poder de atuacao, permitindo maior racionalidade no uso do instrumento dos juros para estabilizar a economia. Deveria uma inflacao transitória de alimentos afetar as taxas de juros, mesmo que o banco central tenha razoavelmente pouca capacidade de responder a ela? Essa é a uma pergunta em parte política, mas em parte técnica também. Falaremos da parte técnica mais pra frente.

Especificacao 4 — Regra de Taylor com funcao-resposta do banco central e expectativas de inflacao

Eq. 4, ainda dentro da especificacao anterior, trocamos mais uma vez a medida de inflacao e passamos a usar a expectativa do mercado

Ainda dentro da nossa última especificacao, fizemos a troca da medida de inflacao para a expectativa do mercado, que é principalmente coletada através de pesquisas feitas junto aos principais agentes de projecao macroeconomica do mercado. A expectativa de inflacao também pode ser extraída de forma implícita através da diferenca dos juros reais e nominais das curvas de juros no mercado futuro, portanto refletindo as apostas do mercado financeiro sobre a inflacao futura.

No Brasil, a fonte desse dado é a pesquisa Focus, onde o principal incentivo de contribuicao dos agentes se torna o ranqueamento das projecoes mais acuradas em divulgacoes mensais, permitindo um certo ‘marketing’ as instituicoes responsáveis por essas predicoes.

Do ponto de vista teórico, trocar a medida de inflacao para uma de expectativa também faz sentido, uma vez que o analista dá a sua previsao de decisoes do banco central um tom mais prospectivo (em economes, ‘forward-looking’). Cabe explicitar que, as expectativas de inflacao também tem um papel na determinacao da inflacao corrente futura, dando um caráter retroalimentador a inflacao, onde a inflacao corrente alimenta o medo de inflacao futura, e a inflacao esperada contribui para causar inflacao corrente no futuro.

Portanto é de extrema importancia que os bancos centrais atuem de forma a ancorar expectativas de inflacao, e é com base nesse argumento que cabe a resposta para a parte técnica da pergunta feita no final da especificacao anterior. Vale a pena um banco central responder a um choque transitorio de inflacao de alimentos sempre que esse trouxer um risco de desancoragem das expectativas de inflacao futura, uma vez que contratos em uma economia sao muitas vezes reajustados hoje tomando como base inflacao realizada, nao necessariamente prospectiva.

Especificacao 5 — Regra de Taylor com funcao-resposta do banco central e um ‘sinal’ de inflacao

Eq. 5, nesta versao compilo tudo o que foi discutido sobre inflacao até agora em um caso generalizável com solucao empírica simples

Nesta especificacao, tento englobar os argumentos levantados sobre diferentes medidas de inflacao em um caso geral, que batizo de ‘sinal de inflacao’. Nele, o analista pode ponderar diferentes medidas de inflacao em um único número. Por exemplo, fazer uma média aritmética dos tres dados de inflacao anteriores, ou uma média ponderada deles incluindo outros indicadores, como por exemplo precos ao produtor, ou o IGP-M, ou até mesmo um índice de inflacao totalmente construído.

A única limitacao desta estratégia é a de se tomar em conta o índice oficial de inflacao utilizado como objetivo pelos bancos centrais. A intuicao por trás do uso de diferentes indicadores se sustenta no fato destes servirem de informacao a respeito do que pode vir a acontecer com a inflacao oficial hoje. Ou seja, se o analista acredita que um IGP-M mais alto vai refletir num repasse de precos maior ao consumidor final medido pelo IPCA (o índice objetivo do banco central), ele estaria livre para ponderá-lo em um sinal de inflacao e testar sua hipótese através dessa especificacao econométrica da Regra de Taylor. Para a finalidade deste post, estarei usando como sinal de inflacao somente a média aritmética entre a inflacao corrente, o núcleo de inflacao e a expectativa de inflacao obtida pela pesquisa Focus.

Especificacao 6 — Regra de Taylor com funcao-resposta do banco central, um ‘sinal’ de inflacao e taxa de juros neutra tempo-variante

Eq. 6, finalmente voltamos a revisitar a regra de movimento, adicionando uma ‘proxy’ de juro de neutro pelas taxas de mercado

Nesta sexta iteracao da Regra de Taylor, voltamos a adicionar estrutura a nossa equacao de movimento adicionando uma variável de taxa de juros de vencimento médio como aproximacao da taxa neutra. Explico a razao de fazer isso a seguir:

Desde Wicksell, sabemos que a taxa de juros neutra (ou ‘natural’) é uma taxa responsável por equilibrar tres frentes ao mesmo tempo.

A primeira e mais intuitiva delas é o setor de crédito. Taxas de juro para diferentes prazos sao resultado da oferta e demanda por poupanca dos agentes em seus correspondentes períodos. Se eu acredito nao precisar usar meu dinheiro até a aposentadoria, vou ao mercado de crédito anunciar o meu desejo de deixar esse dinheiro parado rentabilizado por um banco para que este use meus recursos até o dia do vencimento do meu empréstimo e me pagar com juros acumulados. A taxa básica de juros portanto contribui para determinar o equilíbrio entre credores e devedores no curto prazo.

A segunda, talvez nao tao intuitiva, é o equilíbrio do mercado de moeda estrangeira. Ao lado do comércio exterior, taxas de juros sao variáveis importantes na determinacao de fluxo estrangeiro para investimento em portifólio em títulos da dívida doméstica. Se o banco central opta por uma taxa básica de juros acima da média do mercado, é razoável esperar um maior influxo de fundos em dólares comprando títulos domésticos e permitindo maior oferta doméstica de dólares localmente. A taxa básica de juros portanto permite ajustar maior entrada e saída de divisas internacionais em um país.

A terceira e menos intuitiva de todas, provavelmente mais restrita aos macroeconomistas, é o papel estabilizador de ciclos da política monetária. No médio prazo, a taxa neutra é aquela que oferece suficiente crédito para a economia operar exatamente no seu pleno emprego com uma inflacao ancorada em seu objetivo.

Em todas as especificacoes anteriores, usar o intercepto como medida de juro neutro ignora totalmente as duas primeiras frentes do papel do juro neutro mencionados acima, uma vez que este é calculado como uma medida independente do ciclo economico, nao exatamente como funcao de crédito ou rentabilidade de títulos internacionais. Ao incluirmos uma taxa de juro de mercado, de preferencia em um período de vencimento no qual ja se espera que o ciclo economico tenha acabado (por isso um prazo de cinco anos a frente), atendemos este buraco deixado pelas especificacoes anteriores.

Especificacao 7 — Regra de Taylor com funcao-resposta do banco central, um ‘sinal’ de inflacao, taxa de juros neutra tempo-variante e ajustes na meta de inflacao

Eq. 7, nesta iteracao final, ajustamos a meta de inflacao com base em uma narrativa ‘histórica’

Nesta última iteracao da nossa Regra de Taylor, faremos uso da versao final da especificacao incluindo uma taxa de juros de mercado como proxy para a taxa neutra, mas também incluindo alguns ajustes históricos a série de tempo da meta de inflacao com base em uma narrativa de quebra estrutural temporária.

O ajuste tentará incorporar um fato histórico na nossa estimacao, que vai dar cabo de um momento relativamente atípico nos últimos dez anos de política monetária no Brasil. Este momento ocorreu durante a gestao Alexandre Tombini, onde a taxa de juro real (descontada da inflacao) brasileira foi forcada e mantida mais baixa contra as recomendacoes de uma Regra de Taylor, sob os parametros observados hoje.

Política monetária de 2008 a 2021T1. Destacamos a gestao Tombini durante o período iluminado em cinza.

A manobra de reducao da taxa de juros durante o início da gestao Tombini de 2011–2014 caracterizou um momento incomum da política monetária pois o banco central brasileiro entregou cortes até entao históricos na taxa Selic, muito embora a inflacao tivesse rodado acima da meta durante todo o período. Muitos argumentam que esse movimento foi puramente político, de intervencao do executivo na gestao do banco central brasileiro de forma a assegurar um bom desempenho eleitoral em 2014. Apesar de nao ser possível rejeitá-lo, há também o fato deste período ter sido marcado por consistentes revisoes da estimativa de produto potencial da economia brasileira, que poderia portanto justificar cortes excessivos de juro a uma má calibragem do ciclo economico fazendo parecer com que a economia estava menos aquecida do que realmente estava. Infelizmente, a inflacao seguiu acelerando, até desancorar nos dois dígitos em 2015.

Seja qual for a razao para esse movimento da política monetária, ajustar a meta de inflacao da gestao Tombini para uma meta ‘omitida’ de 6.5% ao ano no lugar dos usuais 4.5% parece fazer sentido. Primeiro porque este foi o nível da inflacao durante a maior parte da gestao Tombini, segundo porque o banco central só realmente passou a atuar com juros reais contracionistas após o período eleitoral ao fim de 2014.

Esta narrativa que permite um ajuste na meta de inflacao de fato perseguida pelo banco central brasileiro entre 2011–2014 possui também fundamentacao econométrica, uma vez que todas as estimativas de Regra de Taylor que fazem esse ajuste sao beneficiadas tanto em critério de informacao, quanto magnitude e significancia dos componentes estimados. Discutirei isso em maior detalhe na sessao seguinte.

Estimando a Regra de Taylor brasileira

Nesta sessao, farei a estimacao da Regra de Taylor para o Brasil em todas as especificacoes mostradas acima. Todas elas se mostram significativas para prever a taxa de juros brasileira, e tornam explícito alguns pontos:

1. O banco central brasileiro nao atua de forma estritamente discricionária, fosse isso verdade, os coeficientes nao teriam significancia estatística;

2. Medir cuidadosamente cada um dos componentes, inclusive considerando intervalos diferentes para a meta e os sinais de inflacao, produz estimativas centrais com diferencas relevantes. Uma projecao da taxa Selic feita com medidas ruins da taxa de juro neutra produziria uma trajetória nao necessariamente inconsistente, mas descasada com as apostas de mercado atuais;

3. A política monetária brasileira sobreviveu muitos ciclos, uns onde algumas variáveis importaram mais do que outras. Hoje, por exemplo, o debate sobre o repasse cambial para inflacao é muito mais relevante do que no início de 2011, quando a taxa de cambio brasileira flutuava abaixo de R$ 2 por dólar. Faz sentido julgar muitas vezes a existencia de certos vieses temporários nas estimativas, e entender que uma medida incondicionada da taxa Selic estar errada em certo período faz sentido por motivos específicos do momento.

4. É mais difícil estimar o ciclo economico em tempo real do que é estimá-lo olhando para o passado. Em muitos momentos da política economica, desvios da Regra de Taylor foram cometidos por uma incapacidade de se observar o momento da economia. Isso se aplica para qualquer país, nao só para o Brasil, e nao é sinonimo de má qualidade da gestao da inflacao.

Abaixo, ilustro a tabela resumo de todas as especificacoes estimadas. A metodologia aplicada foi mínimos quadrados, com amostragem de 2008T1 a 2021T1, em frequencia trimestral. A fonte de cada uma das séries temporais estará explicitada logo em seguida.
Obs.: para a medida de juros neutro, uso um filtro HP na taxa de juros pré com vencimento em cinco anos imediatamente seguintes ao período de referencia.

Sete regressoes para a Regra de Taylor brasileira. Os asteriscos denotam significancia dos coeficientes estimados em 1% (***), 5% (**) e 10% (*).
Sete trajetórias para a Taxa Selic. Aqui, uso premissas pessoais identicas para as projecoes para fora da amostra.
Tabela com lista dos dados utilizados. Clique para ampliar.

Esse foi um post mais longo do que o usual, tenho certeza que compensará pelo enorme atraso em tratar deste tema tao caro no blog. Fico por aqui.

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Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.