O brasileiro gostaria que a gasolina fosse subsidiada? Cuidado com aquilo que deseja
Fugindo um pouco do teor dos textos que costumo criar aqui no blog, dessa vez resolvi falar de um tema bastante em alta na midia de economia e política brasileira. Neste post, tratarei sobre o que está em jogo no debate que nunca terá fim sobre a gasolina.
Como a grande maioria dos debates populares é sempre mal colocado, tentarei estruturá-lo em partes que organizam o argumento em etapas.
Parte 1: A gasolina brasileira é/está cara?
De forma geral, nao.
Existem duas principais formas para se analisar e responder essa pergunta:
A primeira é olhando o preco da gasolina em uma unidade de conta internacional, comparando-a com o preco médio de vários países:
A segunda é comparar o preco da gasolina no tempo, ajustando esse preco pelo poder de compra da populacao.
Portanto, uma breve visita aos dados, quando apropriadamente dispostos e analisados, nos mostra que a gasolina nao se encontra muito mais cara do que já foi, e é mais barata em relacao ao resto do mundo. O consumidor de gasolina brasileiro merece mais do que o consumidor de gasolina no resto do mundo? Eu penso que nao.
Parte 2: A volatilidade da gasolina é um problema?
Nao me parece ser o caso. Sim, desde que a Petrobras decidiu praticar uma política de precos de mercado, a volatilidade dos precos de produtos derivados do petróleo no Brasil aumentou, mas esse aumento nao foi significante.
Essa política de precos, embora soe maquiavélica para muitos, é antes de mais nada uma condicao imposta pelo mercado a Petrobras. A empresa é obrigada a praticar uma paridade de precos de importacao, pois caso ela nao o faca, um revendedor doméstico de gasolina refinada ou petróleo cru poderá compra-lo no Brasil e exportá-lo pelo preco do mercado internacional, lucrando todo o subsídio oferecido pela Petrobras.
Basta que poucos players operem no mercado desta forma para que o preco de equilíbrio no mercado doméstico eventualmente volte a se equiparar ao preco internacional. Tal processo chama-se arbitragem, e torna dificultada uma tentativa da Petrobras de administrar precos domesticamente. Esta atividade de arbitragem pode também soar perversa em um primeiro momento, mas ela serve o seu propósito. Em muitas situacoes de sobreoferta de petróleo a Petrobras conta com tais arbitradores para garantir o escoamento do seu produto para fora do país em situacoes onde a demanda doméstica esteja desaquecida.
Mas voltando ao tema da volatilidade, é importante notar que muito embora a diretriz da nova política de precos seja o de seguir o preco internacional do petróleo em reais, a volatilidade dos insumos do petróleo nao é passada integralmente quando chega na bomba para o consumidor:
Este fenomeno de suavizacao de precos ocorre por uma série de motivos.
Primeiramente porque a concorrencia nos postos de gasolina, que sao meros intermediários do combustível brasileiro, desincentiva que estes repassem os aumentos de custo ao consumidor final. Em bom portugues, a alta sensibilidade aos precos do consumidor aliada a concorrencia entre os postos de gasolina dificulta este suposto repasse de precos.
Além disso, a Petrobras também pratica uma política de suavizacao de seus precos em sua diretriz. Suavizando os repasses em revisoes que levam em consideracao médias móveis mensais da cotacao do petróleo e da taxa de cambio.
Vale lembrar também que a própria natureza de correlacao negativa entre o barril do petróleo internacional e o custo do dólar em reais também auxilia em manter essa volatilidade mais baixa na grande maioria das vezes (apesar de estarmos justamente num momento de raras excecoes a esta regra).
Parte 3: Como assim? Voce quer dizer entao que está tudo bem?
Pois é, pela forma como foi colocada esta análise até agora, parece que o brasileiro simplesmente criou um debate nacional sem fundamento. É claro que isso também nao é verdade.
A economia brasileira nao vai bem há muitos anos, tanto em termos de comparacoes com o seu passado quanto em termos de comparacao com o ritmo de crescimento de outros países.
Depois de mais de 6 anos, o Brasil até hoje nao conseguiu recuperar seu nível de renda observado ao fim de 2014, quando iniciou sua crise fiscal. A renda média per capita em dólares correntes brasileira é hoje a metade daquela que atingiu em seu pico, lá em 2011, quando o dólar flutuava na casa dos R$1.60–1.80. Este tempo já nao volta mais, e suas consequencias sao gradualmente sentidas quando o poder de compra de bens importáveis é cada vez menor.
A natureza da crise brasileira nao é, portanto, a gasolina ou a Petrobras, mas da renda doméstica, que falha em acompanhar a renda do resto do mundo.
Parte 4: Cuidado com aquilo que se deseja
Se o leitor deste texto chegou até esta parte e ainda está convencido de que é possível e desejável subsidiar a gasolina brasileira, nesta parte, apresentarei algumas dificuldades adicionais se por um acaso optarmos por tal política no Brasil.
Volatilidade ou nível de preco?
Se é do desejo do formulador de políticas públicas atender a populacao com um subsídio a gasolina, primeiro, é preciso identificar exatamente qual é a origem do problema: se é o de suavizar precos ou de subsidiar um teto implícito para o custo da gasolina. Ambas políticas incorrem em um custo fiscal, uma vez que se a Petrobras incorrer em maior prejuízo, o governo precisaria cobrir seu rombo com tributos para a populacao lá na frente (além de todas as ineficiencias alocativas acessórias a isto).
Petrobras para que mesmo?
A razao pela qual a Petrobras está envolvida neste debate é porque por décadas ela foi o veículo que o governo brasileiro escolheu para administrar o preco da gasolina. Em todos os tempos de crise de aumento do preco do petroleo ou de desvalorizacao da taxa de cambio, o governo brasileiro utilizou a petroleira estatal como um recurso extrafiscal (fora do orcamento público) para absorver custos e subsidiar a gasolina da populacao.
Acontece que essa foi somente a prática mais comum brasileira. Nao precisa ser a única, e passa longe de ser a mais transparente e eficiente. O governo pode muito bem aprovar, via congresso nacional, um projeto de lei que permita ele subsidiar o preco da gasolina diretamente no consumidor final. Um “vale-gasolina”. Claro que isso passa longe das intencoes do governo pois seria uma politica tao explicitamente condenável pelo mercado e de tao baixa credibilidade de aprovacao, que provavelmente nao aconteceria. Muito mais apropriado seria o governo entregar o que prometeu primeiro (um ajuste fiscal gradual) para depois refletir sobre o que fazer quando tiver algum dinheiro lá no futuro.
A decisao de subsidiar precos de gasolina pode ser uma decisao totalmente ortogonal ao que se deve ou nao fazer com a Petrobras. Fato é que se o Poder Executivo continuar esgotando os recursos da empresa (e portanto dos seus acionistas minoritários privados), o governo brasileiro vai se ver obrigado a recomprar todas as suas acoes de volta, eventualmente.
Para quem vai o dinheiro do subsídio da gasolina?
Pois é. Esta, para mim, é uma questao central de todo este debate. Mesmo se suposéssemos um Brasil em um céu de brigadeiro, sem dificuldades fiscais, Petrobras livre dos encargos da sua dívida e perfeitamente disposta a administrar a gasolina, e nenhuma crise economica… será que arcar com as consequencias de um subsídio para gasolina é exatamente aquilo que queremos para o país?
Pois é, quando olhamos para os dados disponíveis do IBGE pela Pesquisa Nacional de Amostra em Domicílios (a PNAD), e cruzamos com a pesquisa do Índice Nacional ao Consumidor Amplo (o IPCA), notamos correlacoes importantes.
O primeiro gráfico de dispersao acima mostra uma correlacao positiva entre a renda média dos estados brasileiros ao longo de 2012 a 2019 com a participacao do consumo da gasolina na renda da populacao. Esta correlacao positiva portanto mostra que, quanto maior foi a renda média do estado, maior foi a participacao da gasolina na renda do consumidor daquele estado. Em poucas palavras, quanto mais rico, maior era o consumo de gasolina. A mesma análise foi feita para o botijao de gás, amplamente conhecido por ser um bem de grande peso orcamentario na renda dos mais pobres. Logo, quanto mais rico, menor o peso do botijao de gás na renda.
A mensagem destes dois gráficos é a de que, preliminarmente, há de se desconfiar que subsidiar a gasolina é transferir renda de pobres para ricos, uma vez que pobres nao farao um usufruto tao relevante do subsídio da gasolina quanto a classe média brasileira que possui carro próprio e viaja frequentemente de aviao.
Pobres usufruiriam indiretamente dos beneficios da gasolina, sim, em razao dos menores custos de fretes embutidos nos precos dos produtos que consomem, ou nas passagens de onibus. Mas esse benefício é diluído entre todos os consumidores de uma economia, ricos e pobres. Falho em enxergar como isso poderia sobrepassar o efeito direto mencionado há pouco.
Esta é a entrada de hoje no blog, e a mensagem final é: cuidado com aquilo que voce deseja.