Macroeconomia e expectativas — O porquê, o para quê e o como
Depois de um post relativamente longo sobre conjuntura, hoje resolvi voltar a discutir um pouco de teoria. O intuito do tópico de hoje é enderecar a importancia das expectivas na análise dos dados macroeconomicos, entendendo o porquê de certas variáveis se comportarem como se comportam a partir daquilo que as pessoas esperam para elas no futuro.
Separei este texto em três tópicos principais. A primeira parte é sobre o porquê, para explicar a relevancia desse tema na prática da análise macro. A segunda trata do para quê, que mostra como explorar diferentes teorias de como consumidores, firmas e autoridades governamentais formam suas expectativas sobre o futuro (e até onde isso é realmente possível). A terceira eu apresento exemplos simples de como representar essas expectativas em projecoes macro da maneira mais simples possível.
O porquê
Comecando da conclusao, o porquê de se discutir a maneira como representamos agentes em modelos macroeconômicos é de uma finalidade acima de tudo prática. Representar agentes de formas diferentes
Para explorar o porquê de trabalharmos com diferentes premissas de formacao de expectativas, faz sentido formalizarmos as diferentes maneiras de se representar a formacao de expectativas dos agentes conhecidas ao longo da história do pensamento econômico.
Expectativas estáticas (ingênuas)

Expectativas estáticas sao aquelas onde um agente observa o valor passado de uma variável e, sem dispor de qualquer conhecimento sobre a lei de movimento dessa variável (representada por y), assume que ela será a mesma no futuro a nao ser que algo aleatório (representado por ε) aconteca e traga-a para um novo patamar, onde lá ficará. Em razao das inovacoes serem aleatória, a melhor expectativa para o valor futuro do ativo é o valor que ele se encontra hoje.

Existem duas principais razoes para representarmos expectativas variáveis de tal maneira. A primeira delas é quando sabemos que agentes nao possuem uma teoria para julgar a trajetória futura de uma variável econômica. A segunda é um pouco mais sofisticada, que pretendo explicar mais para frente.
Essa pode ser considerada a mais primitiva, portanto ingênua, das formacoes de expectativas a respeito de variáveis macroeconômicas. Este tipo de interpretacao para o futuro a partir do passado costuma ser mais tipicamente observado em pesquisas de opiniao sobre o futuro para nao-especialistas, como por exemplo as pesquisas de expectativa de inflacao feitas a partir de entrevistas com consumidores nao especializados nos temas macroeconômicos. Para essas pessoas, geralmente o comportamento futuro das variáveis costuma estar fortemente ancorado no último dado noticiado nos jornais.
Expectativas adaptativas

Em um passo a frente das expectativas estáticas estao as expectativas adaptativas. Nessa modalidade de expectativa, agentes já nao sao tao ingênuos, e sao capazes de aprender com o passado. Essa aprendizagem é tipicamente representada por um fator de correcao de erros acrescido a equacao α(y-ŷ), onde α assume um valor frequentemente entre zero e menos um, devolvendo os desvios passados entre y, nossa variável de interesse, e ŷ, nossa melhor estimativa usando dados passados de y.

Neste caso, as expectativas adaptativas usam relacoes entre variáveis estabelecidas no passado para construir uma espécie de convergência futura, sob a hipótese de que essas relacoes se manterao no futuro.
Há diversas aplicacoes da teoria econômica apropriados para este tipo de construcao de expectativas. Por exemplo na relacao renda x consumo. Famílias estarao sempre constrangidas a consumir dentro de suas restricoes orcamentarias, de forma que o total que elas consumirao em um período será uma parcela daquilo elas receberam no período imediatamente anterior. Portanto, é razoável imaginar que se em determinado periodo a renda seguiu subindo mas o consumo sofreu uma queda temporária que este consumo tenha se transformado em poupanca e que portanto terá uma recomposicao futura forte (a convergência) quando essa poupanca for utilizada.
A ideia de expectativas adaptativas foi por muito tempo a maneira vigente de interpretar agentes por policymakers (bancos centrais, ministérios da economia, etc), em razao destas relacoes serem facilmente estimáveis através de técnicas estatísticas e econométricas. Em razao do abuso no uso destas técnicas estatísticas, sao muito facilmente observados expectativas de simples reversoes a média histórica para taxas de variacao e tendencias das variáveis modeladas. A limitacao destes modelos se dá exatamente quando a hipótese de retorno a média nao é mais tao convincente, por razoes que entenderemos adiante.
Expectativas racionais

A mais sofisticada das formacoes de expectativas modeláveis até hoje é conhecida como a expectativa racional. Já tateamos neste tema e duas outras publicacoes aqui neste blog.
A expectativa racional pode ser mais intuitivamente compreendida como uma expectativa que filtra tudo aquilo que é relevante para prever o futuro, nao somente aquilo que já está no passado. Ela assume que os agentes de uma economia já possuem uma boa ideia das relacoes de causa e efeito das políticas públicas e econômicas adotadas pelos governos ex-ante, e por isso agem de forma antecipada em benefício próprio.
Uma anedota didática, para além de outras que já usei aqui em outros textos no blog, é imaginar um gestor de fundos de investimento procurando oportunidades para ganhar um bom dinheiro com notícias de alta frequência. Um dia este gestor abre o jornal e percebe que uma nova variante muito agressiva e infecciosa do coronavirus foi documentada na India, e que as melhores estimativas já mostram que essa variante deve chegar ao Brasil em dois meses. O gestor nao vai esperar dois meses para comecar a posicionar ajustar seus investimentos, ele vai faze-lo o quanto antes: aumentando sua exposicao comprada em dólares e em taxas de juros (apostando que subirao ainda mais) ele vai tentar antecipar o mercado financeiro para ganhar dinheiro, mas todos os demais gestores tem todo o incentivo para nao ficarem para trás. O resultado dessa arbitragem antecipada é uma depreciacao cambial (encarecimento do dólar) e um aumento da taxa de juros no dia seguinte da divulgacao da notícia, que já estará incorporada na economia muito antes da suposta variante que causou essa movimentacao nos precos atingir o Brasil.
A moral da anedota é basicamente que os agentes estao acima de tudo tentando prever o futuro, porque isso oferece a eles uma vantagem competitiva em suas tomadas de decisao. Isso vale para muitas coisas em economia. Pense no empreendedor de turismo que resolveu atrasar investimentos em razao das incertezas da pandemia sobre a demanda por turismo. Certamente ele deixou de perder muito dinheiro por ter tomado essa decisao, que se provou acertada. Gracas a isso, ele terá condicao de investir mais em um momento mais oportuno no futuro.
Voltemos para nossa pequena equacao de expectativas racionais. Dessa vez, substituímos nossos termos de observacoes anteriores y(t-1) por expectativas sobre o futuro: E[y(t+1)│Ω(t)]. Aqui, o operador de esperanca E[.] é condicionado ao conjunto de informacao Ω do agente no presente, isso é, tudo aquilo que está disponível de informacao para o agente hoje vai contribuir para determinar valor da variável já no presente. Pegando emprestado os fatos estilizados da macro tradicional, se um consumidor com expectativas racionais é acometido por um anúncio de incentivo fiscal ao consumo no presente através de um aumento dos gastos do governo, ele pode, ao invés de consumir o valor do incentivo, entesourá-lo para o futuro, uma vez que este consumidor espera que este aumento nos gastos do governo será muito provavelmente acompanhado de uma queda compensatória do gasto ou aumento de tributos no futuro para equilibrar as contas públicas. O governo faz a política econômica, mas o efeito dela é mitigado porque os agentes antecipam a próxima rodada de acoes do governo.
A representacao visual de diferentes interpretacoes sobre o que significam as expectativas racionais é um pouco mais complexa de se fazer graficamente, pretendo ilustrá-la de maneiras diferentes quando colocarmos a mao na massa na parte de modelagem. De momento entender a intuicao basta.
Com isso, torna-se um pouco mais claro entender que a principal razao pela qual devemos pensar em como agentes formam suas expectativas sobre o futuro é justamente porque essa expectativa traz resultados distintos para as políticas econômicas. O cálculo de um impacto de determinada política econômica, como um aumento dos gastos do governo ou das taxas de juros do banco central pode mudar significativamente.
O para quê
Na sessao anterior explicamos três maneiras de se representar expectativas. Aqui, vamos falar de algumas aplicabilidades práticas que podem tornar a ideia razoavelmente menos complicadas.
Para tornar o conteúdo um pouco menos denso e abstrato, usarei alguns exemplos gráficos que sao mais visuais e podem esclarecer melhor a ideia do porquê pensar em como agentes reagem é relevante para a boa conducao política econômica e das projecoes sobre ela.

Contrastemos tres maneiras de se fazer uma projecao sobre a política monetária observando o Gráf. 4. Três tipos diferentes de agentes formam suas expectativas sobre o futuro da taxa de política monetária usando os modelos citados na sessao anterior.
Note que a expectativa ingênua nao faz qualquer crítica sobre o nível mais recente da política monetária atual, e o último valor observado é provavelmente aquele que será para sempre para ele. Já o agente com expectativas adaptativas olharia para o conjunto da série de tempo, adotando uma projecao de convergência para a média histórica observada, pesando bastante o passado me sua projecao. Enquanto isto, o agente de expectativas racionais faria uma projecao tentando encontrar a taxa de juro neutra, que leva em consideracao fatores que nao dependem tanto da política monetária em si para serem determinados.
A visao holística do agente com projecoes racionais permite a ele maior acurácia de projecao, o que para ele pode se traduzir em investimentos mais rentáveis ou uma decisao de consumo mais eficiente, levando em consideracao o aumento correto do custo do crédito. Essa é a visao pragmática motivadora do ponto de vista do agente que projeta o futuro.
Há também a visao pragmática que motiva ao banco central comunicar apropriadamente suas decisoes, para evitar deixar os agentes de sua economia cegos quanto a suas decisoes de mudanca da taxa de juros mais recentes. Em seus comunicados, os bancos centrais podem deixar dicas do que as decisoes do presente significam para o futuro, se a taxa de juros está baixa/alta demais por motivos temporários ou nao, e com isso oferecer maiores subsídios para que os agentes tenham uma reacao mais parecida com a de um agente com expectativa racional ou invés de agentes ingênuos ou meramente adaptativos.

A comunicacao do banco central também serve um propósito importante nas expectativas de inflacao. Quando estabelecida, um banco central com alta credibilidade de perseguir tal meta terá o auxílio das expectativas racionais dos agentes da economia de que a inflacao de médio prazo estará próxima da meta, muito antes de qualquer acao do banco central. Tal fenômeno de ‘ancoragem’ das expectativas de inflacao de médio prazo dentro da meta permite que o banco central entregue inflacao mais estável com menor custo, isto é, com uma taxa de juros mais baixa do que caso contrário. Conforme observamos no Gráf. 5.
Cabe destacar que também existem situacoes onde distintas modelagens de expectativas de agentes faz pouca diferenca para a percepcao futura sobre uma variável. Este é o caso da taxa de câmbio.
No curto prazo, variáveis financeiras negociadas em alta frequência possuem a usual característica de conter no presente toda a informacao possível sobre o presente em seu preco. Em virtude disso, essas variáveis apresentam uma dinamica de passeio aleatório, em que a melhor previsao possível para o preco futuro é exatamente o seu preco atual.
Vejamos um exemplo com a taxa de cambio brasileira:

O fato das variacoes diárias da taxa de câmbio serem historicamente concentradas ao redor de zero faz com que tanto expectativas adaptativas quanto racionais sejam identicas a expectativa estática. Nao a toa projecoes de curto prazo para a taxa de câmbio sao frequentemente apresentadas com uma dinamica fortemente dependente do último observado. Por isso, o câmbio e outras variáveis financeiras de negociacao de alta frequência acabam caindo na seara das poucas variáveis onde a modelagem das expectativas nao faz muita diferenca para o resultado da projecao.
O como
Nesta sessao, falarei um pouco sobre como sintetizar todas as ideias citadas aqui na prática, pensando em situacoes onde de fato se torna aplicável cada maneira de representacao de expectativas, para fins de projecao macro.
Em uma situacao limite onde agentes sao perfeitamente racionais, seria possível consolidarmos qualquer projecao a respeito de uma variável macroeconomica a partir de sua expectativa. Assumir isso seria análogo a assumir que agentes possuem previsao perfeita (perfect foresight), porém, como vimos em tópico anterior aqui no blog, essa hipótese é irrealista. Cabe a nós, portanto, usarmos dados de expectativas sobre variáveis futuras a nosso favor, incorporando-as como uma variável explicativa adicional aos nosso modelos preditivos.

Usar expectativas estáticas para a taxa de câmbio é uma prática bastante comum no curto prazo, dado que é uma variável que tenta incorporar toda a melhor informacao sobre o futuro em seu preco no presente. Para prazos mais longos, no entanto, faz sentido adicionarmos alguma estrutura adaptativa ou racional para a nossa previsao, incorporando relacionamentos passados com taxas de juros, risco soberano ou precos de commodities no caso de países emergentes.

Nessa estrutura de projecao a partir de expectativas adaptativas, temos um PIB que converge para uma proxy de crescimento tendencial e no ritmo dessa cresce para a perpetuidade. É importante entender as vantagens e limitacoes de tal projecao: é simples de se fazer, requer pouquissima leitura do contexto da variável além da sua própria série de tempo, no entanto vai falhar em capturar o efeito de mudancas em variáveis que definitivamente afetariam esse crescimento doméstico, como taxas de juros, de cambio, inflacao, crescimento internacional, entre outras.

Neste terceiro caso, temos uma forma simples e inteligente de incorporar expetativas racionais em nosso modelo, simplesmente ponderando uma convergencia da inflacao em seu ponto atual com a inflacao esperada. Enquanto este tipo de projecao está claramente suscetível a erros, os erros estarao sempre associados a eventos que surpreenderam um consenso de analistas, que, se robusto o suficiente, nao costumará errar sistematicamente (i.e. em uma direcao específica) suas projecoes. A simples ideia de se incorporar expectativas em um modelo preditivo torna ele racional pelo fato dessas expectativas incorporarem em si os impactos futuros da política econômica, além de quaisquer outros fatos qualitativos em suas projecoes. A expectativa de um consenso de analistas, enquanto preocupada com o futuro e sob um arranjo coerente de incentivos pela acurácia (como costuma ser o Top 5 do Focus), é a melhor previsao possível para uma variável macroeconomica para fins de acurácia consistente ao longo do tempo.
Existe uma segunda maneira de representar expectativas racionais em uma previsao, feita a partir de um modelo estrutural apropriadamente calibrado, ferramenta que já utilizei aqui neste blog também. Neste modelo, o analista deve representar a relacao endógena entre as variáveis macro para ele relevantes, analisando repercussoes em sua projecao a partir de choques em cima de uma economia que caminho para o equilíbrio de longo prazo teórico em ditado modelo. Vamos refazer o exercício aqui mais uma vez.
Suponha que queiramos analisar o impacto de um forte choque cambial na economia brasileira a partir do ano que vem, em razao de uma forte incerteza política durante a corrida eleitoral. Vamos representar a álgebra do nosso modelo:

Para garantir uma relacao entre variáveis denotadas em tempo futuro no formato de expectativas E(t)[x(t+1)] atribuiremos aos agentes uma conjectura sobre o futuro que atualiza sua previsao constantemente a partir dos dados passados:

Dessa forma, podemos resolver para cada uma das variáveis isoladamente a partir de uma relacao intertemporal passada entre elas de maneira endógena, como em um vetor autorregressivo de ordem 1.
Para darmos a dinamica do modelo, precisamos definir os valores para os parâmetros representados pelas letras gregas das equacoes. Para isso, usaremos calibragem como já fizemos antes:

Como no modelo anterior, usaremos a regra de iteracao definida pelas nossas conjecturas para encontrar os parâmetros de longo prazo de cada uma das variáveis. Assim, podemos analisar choques nesta economia criada no nosso ‘laboratório pessoal’:

Neste choque, vemos que o repasse do encarecimento do dólar para a inflacao forca o banco central a atuar levando a economia a contrair-se mais do que ela já iria em resposta ao aumento dos juros. Esta desaceleracao é somente parcialmente compensada pelo aumento do saldo comercial, que se beneficia da depreciacao cambial. No longo prazo as variáveis retornam ao seu patamar de equilíbrio, garantido pela calibragem dos nossos parâmetros. Neste modelo, procuro replicar o melhor possível a minha interpretacao da economia brasileira.
Dessa forma, sou capaz de representar de maneira sensível os efeitos interrelacionados das variáveis macroeconômicas, antecipando um choque para a economia brasileira que sequer está no radar das expectativas de mercado, mas que me permite montar uma posicao estratégica antecipada dentro deste possível futuro. De maneira menos formal e mais intuitiva, os economistas profissionais responsáveis pelas projecoes submetidas ao Focus estarao fazendo exercícios semelhantes, sensibilizando as condicoes presentes da economia brasileira de forma a produzir projecoes consistentes para o futuro. O uso de modelos formais (ou matemáticos) nesse processo é da escolha e competencia do analista, que pode ir bastante além do que o modelo de exemplo deste post ofereceria, envolvendo mais ou menos variáveis, com dinamicas lineares ou nao-lineares.
O material deste post está disponível publicamente no meu Google Drive. Este texto foi escrito após um bate-volta com o pessoal do Economia Mainstream, um projeto do qual sou colaborador e convido a todos conhecer. Ajude-nos a trazer conteúdo de economia didático e o mínimo politizado possível para aqueles que querem aprender Economia mas nao deram a sorte que eu dei de fazer um curso em uma boa instituicao. Por hoje fico por aqui.