Fechando o hiato de produtividade brasileiro (parte 2)

Felipe Camargo
10 min readMay 18, 2022

A entrada de hoje é uma continuação de postagem anterior, dedicada à identificar gargalos na produtividade do trabalho no Brasil. Se você chegou agora, recomendo retornar após a leitura atenta da parte 1 aqui.

No texto anterior, motivamos nossa discussão de produtividade como uma condicao necessária para o crescimento econômico. Desenvolvemos uma forma de pensar a produtividade através de um modelo macroeconômico neoclássico, e comparamos o desvio do produto por hora trabalhada no Brasil ante o americano usando os componentes desse mesmo modelo. Voltemos brevemente a ele:

Nesta decomposição, a produtividade por hora de trabalho (y) brasileira é fruto do produto combinado do acúmulo de capital por trabalhador (W), da escolaridade média dos trabalhadores de cada país (H) e de um resíduo que os economistas apelidam de ‘produtividade total dos fatores’, ou PTF (A), que tende a ser associado com fatores qualitativos (ou ao menos dificilmente quantificáveis) que não poderiam ser negligenciados. ‘A’ quantifica, efetivamente, nossa ignorância sobre porquê uns países são pobres enquanto outros são ricos.

Ao tratar das variáveis qualitativas por trás do ‘A’, economistas costumam tentar resolver o assunto contando histórias mirabolantes, jogando ideias na parede para ver o que ‘gruda’. Na literatura, o que mais ‘gruda’ é a história sobre as instituições, isso é, a infrastrutura legal, os valores culturais e as políticas econômicas setoriais (microeconômicas) de um determinado país que contribuem para a produtividade do trabalhador deste. Neste texto não farei nada diferente. Vou contar a minha história.

A história aqui será dividida em dois grande temas: 1) a qualidade da hora trabalhada, ou quão bem o trabalhador consegue decidir a maneira que realiza suas tarefas, e 2) a alocação de horas de trabalho realmente dedicadas a produção, pois para algumas profissões isso não é sempre o caso. Algumas profissões, ou razoáveis parcelas da demanda por elas, são fruto da necessidade de se atender algum grau de burocracia por parte do governo, por exemplo.

A minha história certamente não pretende esclarecer todas as potenciais razoes para a produtividade brasileira ser mais baixa, apenas enumerar algumas que são visíveis sob a ótica do modelo que desenvolvemos até aqui, e mostrar que podemos estendê-lo ainda mais para contar essa história melhor.

Vamos voltar ao modelo que trabalhamos no post anterior. Como a pergunta que queremos responder diz respeito ao hiato de produtividade brasileiro, escolhemos compará-lo com um país rico representativo. Escolhendo os Estados Unidos, fizemos as seguintes definições:

Assim computados ‘X(tilda)’ como variáveis relativas aos EUA, e o nosso modelo pode ser reescrito assim:

Para transformar as contribuições de cada componente do hiato de produtividade em aditivas ao invés de multiplicativas, podemos representar o desvio de produtividade e seus componentes em unidades de log natural:

Dessa forma, é possível somar contribuições de cada um dos componentes. Nosso objetivo é reduzir a contribuição residual de ‘A(tilda)’ trazendo maior estrutura ao nosso modelo. Vamos para a história.

Sobre a qualidade da hora trabalhada

Quando escolhemos incluir no nosso modelo de crescimento a medida de capital humano, queremos dizer que nem todo trabalhador é igual. Esperamos (e a pesquisa empírica corrobora) que um trabalhador com mais anos de escolaridade se traduza em um trabalhador mais produtivo na média. A escolaridade já é, portanto, uma medida de qualidade, mas seria possível melhorá-la ainda mais?

Uma forma acessível de melhorar a qualidade da nossa medida de capital humano é incluir nela a informação da qualidade do ensino. Inicialmente escolhemos deixá-la de fora propositalmente porque isso estaria incluído naquilo que entendemos por uma medida de qualidade institucional digna de ser representada pela produtividade total dos fatores (A). A qualidade das escolas sendo uma variável da ordem de priorização das políticas públicas de cada país, portanto convenientemente de ser medida pela nossa variável que mede o impacto das instituições no crescimento.

Vamos tentar medir a relevância dessa tal qualidade do ensino. Para isso, usaremos dados do PISA. O PISA padroniza exames internacionais que procuram medir o nível de conhecimento em três principais campos: ‘leitura’, ‘matemática’ e ‘ciências’. Esses exames então proporcionam uma nota comparável para cada país, que são frequentemente usados para medir qualidade do aprendizado dos estudantes e informar a efetividade de políticas públicas no âmbito internacional. Os levantamentos são feitos a cada três anos, em virtude da pandemia o último levantamento disponível é de 2018.

O Brasil, assim como em anos puros de escolaridade média, figura muito mal no PISA. Se calcularmos a pontuação brasileira média nos três temas, vemos que ela fica entre as piores da lista da OCDE:

Se formos capazes de assumir que os retornos na qualidade da educação tal como ela é medida pelo PISA são aproximadamente lineares para cada ano de escolaridade, podemos representar que cada ano de escolaridade brasileira representa em média 400/495 anos escolares americanos. Isso significaria que não só o adulto brasileiro tem em média menos anos de treinamento que o americano, mas que também cada ano de treinamento brasileiro é apenas 0.81 do americano.

Vamos extrapolar isso para todos os países disponíveis na amostra e correlacionar o produto por trabalhador contra os anos de escolaridade ajustados para a qualidade da escola americana:

Se comparássemos este mesmo gráfico sem a normalização pela “qualidade” americana de escolaridade, a correlação medida pelo R-quadrado seria de 0.35. O incremento no ajuste aos dados parece ser boa evidência preliminar de que considerar a qualidade da escolaridade tal como ela é medida pelo PISA é relevante na modelagem da produtividade por hora trabalhada. Incluiremos esta variável no nosso modelo.

Outra maneira de medir a qualidade das horas dedicadas ao trabalho poderia ser medida pela experiência do trabalhador. Seria inclusive possível inferir que escolaridade, qualidade da educação e experiência de trabalho pudessem exponencializar ainda mais os rendimentos do capital humano sobre o trabalho. Há um certo consenso entre especialistas da área de mercado laboral que reconhece a importância do treinamento e da experiência nos rendimentos do trabalho. Inclusive este é um fator determinante de uma produtividade do trabalho mais baixa, como é o caso do Brasil, uma vez que a informalidade se reflete em grande rotatividade no emprego e, consequentemente, ganhos menores de experiência e aprendizado na prática.

O dado de anos de experiência média na ocupação, sobretudo de maneira padronizada para a comparação entre países, é difícil de ser encontrado. Deixaremos esse componente da produtividade dentro do resíduo ‘A’ na falta de um solução para este problema.

Finalmente, há também uma maneira alternativa (talvez até melhor) de se medir a qualidade do uso do tempo de trabalho. Além do PISA, a OCDE também faz uma pesquisa de competências de adultos em ambiente laboral, o PIAAC. Esse levantamento considera um leque amplo de habilidade cognitivas e socioemocionais, e mostra boa evidência de relação positiva com rendimentos do trabalho. O Brasil, por não ser membro da OCDE, não figura neste levantamento de dados. Teremos que deixar o uso dessa variável de lado em nosso exercício também.

Sobre a alocação das horas de trabalho na produção

Para muitos empresários e gestores, este talvez seja o fator menos abstrato discutido no texto até agora. Para quem vive de perto a parte administrativa das empresas, não é nenhuma surpresa que o Brasil figure bastante mal neste tema. As horas de trabalho e a quantidade de servicos terceirizados dispendidos para os trâmites burocráticos são relevantes pois subtraem da atencao da empresa (e do trabalhador) na provisão do bem/serviço de sua atividade-fim.

O Banco Mundial, como parte do seu já falecido levantamento Doing Business, colecionava uma série de dados qualitativos que ilustravam bem do que isso se trata. Alguns exemplos a partir do último ano de levantamento disponível, de 2019:

  1. Uma empresa brasileira precisava em média de 4 anos para resolver uma insolvência, quatro vezes mais do que uma empresa americana;
  2. Um brasileiro levava em média 31 dias para registrar uma propriedade nova em cartório, o dobro requerido a um americano;
  3. No Brasil são necessários 128 dias em média para se conseguir acesso a energia elétrica em uma nova propriedade, ante 89 dias nos EUA;
  4. Por causa de fatores como este, o Brasil ranqueava o 124o lugar no ranking de Ease of Doing Business de quase 190 países, enquanto os EUA figurava na 6a posição.

O mais gritante dentre os critérios disponibilizados pelo antigo levantamento do Doing Business está no número de horas dedicados pelas empresas brasileiras ao longo de um ano para a preparação e pagamento de impostos. O Brasil exige mais de 8.5x horas para lidar com a burocracia tributária do que as empresas americanas, sendo o pior país disparado neste critério.

Dados: Banco Mundial

Para fins ilustrativos e pela conveniência de uma melhor disponibilidade de dados, usaremos esse dado de horas dedicadas por empresa anualmente ao cálculo de tributos como mais uma extensão do nosso modelo. Para tanto, precisaremos fazer algumas hipóteses: a primeira é a de que uma hora trabalhada calculando tributo seria equivalente a uma hora retornando o produto médio por trabalhador (uma hipótese conservadora, dado que contadores e advogados tributaristas estariam na alta casta de escolaridade e portanto produtividade na distribuição de cada país), a segunda hipótese é sobre a quantidade de empresas em cada país para obter o total de horas de trabalho dispendidas anualmente.

De acordo com dados do CEMPRE, do IBGE, o Brasil conta com um total de 5.2 milhões de empresas registradas em 2019. Já o censo americano aponta que os EUA contavam com cerca de 6.1 milhões de firmas no mesmo ano. Multiplicando 1,501 x 5.2 e 175 x 6.1 temos que o Brasil dispende 7.8 bilhões de horas/ano calculando impostos, ante 1.1 bilhão nos EUA. Isso representa 5% do total de horas trabalhadas por todos os brasileiros empregados, versus 0.5% de horas trabalhadas nos EUA. Essa diferença de alocação de horas voltadas para atender a burocracia precisam ser consideradas na produtividade média do trabalho brasileiro. É isso que faremos ao retornarmos ao nosso modelo.

Estendendo nosso modelo de produtividade

Aqui, consideraremos a forma funcional original anterior, adicionando algumas variáveis em vermelho:

Aqui, ‘τ’ representa o spread do tempo dispendido calculando tributos enquanto ψ representa nosso termo de qualidade do ensino brasileiro normalizado pelos PISAs brasileiro e americano

Se tomarmos o logarítmo natural desta forma funcional para termos contribuições aditivas tal como no modelo anterior, teremos:

Dessa forma, usando a calibragem idêntica àquela que usamos na primeira parte do nosso texto, podemos apresentar nossa conta de decomposição da produtividade da seguinte maneira:

Tal como pretendíamos, reduzimos a contribuição residual da produtividade total dos fatores em 20 pontos percentuais do total do desvio de produtividade brasileiro em relação aos EUA. Essa redução se deu ao incluirmos o fator de qualidade do ensino nos anos de escolaridade e devolvendo o tempo dedicado ao cálculo de tributos de volta ao produto por hora trabalhada a cada país.

Ambos ajustes assumiram que essas variáveis produzem impactos lineares, o que pode ser uma hipótese conservadora bastante forte. Seria razoável assumir que aumentando a correlação entre escolaridade e produtividade com uma variável normalizada entre zero e um, o coeficiente de retorno pela educação estimado pela literatura (de 0.086) fosse um tanto maior, por exemplo. Assim como seria possível inferir efeitos maiores na taxa de poupanca (logo maior contribuição do acúmulo de capital por trabalhador) tivessem os trabalhadores mais dedicados à produção ao invés da burocracia.

Se aceitarmos todas as hipóteses colocadas pelo modelo até então, podemos reconhecer que a maior fatia do hiato de produtividade brasileiro com os americanos poderia ser resolvida com um choque de gestão na educação brasileira. Esse choque de gestão deveria ser feito de maneira a buscar aumentar a escolaridade média do adulto brasileiro (e por assim dizer, aumentar o alcance das escolas no país) bem como mirar uma melhora nos desempenhos tal como eles são medidos pelo PISA. Um exercício muito mais fácil de ser dito do que concretizado.

Considerações finais

O modelo tem suas limitações, e é importante reconhecê-las. Pensar dentro da lógica que ele impõe, no entanto, é bastante útil para esclarecer os canais pelos quais cada um dos componentes citados até aqui considerados qualitativos importam para a produtividade, bem como sua ordem de importância. Eu mesmo fiquei bastante surpreso com o tamanho da contribuição e até mesmo com alguns dados básicos sobre a educação no Brasil. O fato de sua contribuição ser por exemplo ainda maior do que o efeito de uma reforma de simplificação tributária evidencia sua urgência.

Este post toma como inspiração um artigo do Samuel Pessôa na revista Lide de um mês atrás, disponível neste link. Recomendo a leitura do material dele na íntegra. Partimos de especificações de modelos neoclássicos parecidos e chegamos em conclusões semelhantes.

Essa é a entrada de hoje no blog. Deixarei em aberto se seguirei a publicar novas partes sobre esse tema no futuro. Obrigado por chegar até aqui e bons estudos a todos.

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Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.