Fechando o hiato de produtividade brasileiro (parte 1)

Felipe Camargo
10 min readMay 9, 2022

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A entrada de hoje tratará da agenda de produtividade brasileira. Por saber que essa é uma discussão não-exaustiva (sempre dá para melhorar), hesitei entrar no assunto aqui no blog. No entanto, dado o contexto de ano eleitoral, com início de campanhas e aumento do interesse da população estudada em compreender melhor o país que vive, acredito que o momento é oportuno. Deixarei este texto registrado como a primeira parte de um sequência de textos que levarão em consideração o feedback que espero receber.

Essa primeira parte levará o caráter de uma tentativa de diagnóstico. Vou propor um modelo que acredito ajudar a responder a pergunta colocada e retornar a ele com frequência para discutir potenciais reformas que ajudariam a endereçar a dificuldade do país em enriquecer.

Motivando o post

Antes de começarmos, vamos à motivação do post, que pode ser resumida em alguns poucos gráficos:

Fonte: PWT 10.0

Como podemos ver no gráfico, a produtividade média por hora de trabalho brasileira é bastante baixa, 26% (aproximadamente 1/4) da produtividade americana. Os dados apresentados vão até 2019, mas os dados de produtividade absolutas produzidos nacionalmente que chegam até o fim de 2021 não sugerem uma mudança relevante nos anos da pandemia. Em contraste com o Chile, o Brasil tem tido muita dificuldade se aproximar da produtividade americana desde os anos 90.

Isso significa que o crescimento econômico que o Brasil experimentou desde então é aquele que os economistas conhecem por “crescimento via força-bruta”: sustentado quase que exclusivamente por um aumento da população em idade de trabalhar incrementando o total de horas trabalhadas por ano.

Fonte: PWT 10.0

Por quê esse dado é importante? Porque produtividade é uma medida muito fortemente associada com bem-estar social. O PIB brasileiro só poderá crescer de maneira sustentada nas próximas décadas se contar com ganhos relevantes no produto/hora trabalhada, uma vez que ultrapassamos aquilo que se entende por bônus demográfico, período no qual a taxa de crescimento da população adulta atinge seu pico em função de uma combinação ótima de taxas de natalidade e mortalidade. Após esse momento (que estima-se ter acontecido no Brasil durante a década de 2011–2020) a taxa de crescimento da população em idade de trabalhar será decrescente, esgotando gradualmente esse tal crescimento via “força-bruta” mencionado anteriormente.

Uma outra forma de crescer sem produtividade é através de aumentos na poupança doméstica. A poupança traz crescimento econômico ao expandir o investimento que gera aumento do estoque de capital disponível por trabalhador na economia. Pense em um programador com um computador mais potente ou um trabalhador do setor extrativista com um trator ou qualquer outro equipamento mais moderno.

No entanto, esse canal do crescimento via poupança para o Brasil é bastante limitado, vide seu baixo nível histórico de poupança como fração da renda e sua alta taxa de depreciação do capital. Em seus níveis atuais, a poupança doméstica sequer é suficiente para repor o estoque de capital líquido brasileiro, que depende do impulso do investimento estrangeiro para crescer.

Fonte: PWT 10.0 e WBdata

Com isso, espero ter motivado suficientemente a agenda da produtividade, que se mostra a última alternativa para o Brasil voltar a crescer, como já cresceu antes, de maneira sustentável. Vamos ao modelo.

O modelo

Como em outros posts aqui no blog, retorno aos modelos neoclássicos de crescimento pelo lado da oferta. Nesta iteração no entanto proponho uma especificação bastante particular para a pergunta em questão:

Aqui, buscamos uma especificação do modelo de Solow aumentada, a la Mankiw, Romer & Weil

A escolha do modelo se justifica porque queremos reduzir ao máximo o resíduo de solow ‘A’, afinal, ele é a medida da nossa ignorância. Nosso objetivo é controlar o crescimento econômico para todos os fatores possíveis, sendo ‘L’ o estoque de trabalho (total de trabalhadores vezes total de horas trabalhadas em média por trabalhador ao ano), ‘K’ o nosso estoque de capital dedicado à produção e ‘H’ uma métrica de capital humano (que aqui é definida simplesmente pelos anos de escolaridade médios do trabalhador), que dá um caráter de retorno crescente de escala ao nosso modelo (apesar de que β+α<1, o que garante uma solução de longo prazo a ele).

Nós queremos um modelo que explique produtividade, portanto precisamos dividir por L dos dois lados da equação, ficando com:

Aqui, ‘K/L’ denota o capital/hora de trabalho, que representa o acesso do trabalhador médio ao capital produtivo

Dando sequência, sabemos que nosso capital é, em parte, endógeno em relação à renda. Vamos mostrar de que forma isso se dá:

Aqui, o estoque de capital líquido ‘K’ depende do seu estoque passado, uma taxa de depreciação ‘δ’ (assumida constante) e um fluxo anual de investimento ‘I’

O investimento, no entanto, tende a ser próximo/igual a poupança doméstica, que por sua vez depende da renda:

Define-se a poupança como a renda nacional deduzida do consumo das famílias ‘C’ e o do governo ‘G’. E(t)s(barra) neste modelo é uma fração constante esperada que o país poupe da sua renda para investir

Logo:

Para resolver para o capital de longo prazo, precisamos adicionar novas premissas ao nosso modelo. A primeira delas é para caracterizar o longo prazo: ele será aquele em que o capital por hora trabalhada ‘K/L’ será constante. A segunda é que a oferta de trabalho ‘L’ cresce a uma taxa anual também constante e conhecida (n). Vamos então dividir nossa lei de movimento do capital por ‘L’ para encontrar o estado estacionário:

Substituindo ‘Y’ pela nossa função de produção:

Para facilitar a notação, definiremos tudo que estiver dividido por ‘L’ como X/L=x:

Impondo nossa condição de longo prazo e resolvendo para ‘k(barra)’:

Chegamos a uma forma funcional do nosso capital ‘K’ que não depende mais da renda ‘Y’. Neste modelo, evitaremos fazer premissas sobre o crescimento de longo prazo de ‘A’, é exatamente sobre ele que queremos inferir lá na frente, portanto carregaremos ele desta maneira até o final.

Recuperando nossa função de produção e substituindo ‘K’ pelo nosso capital de estado-estacionário, temos:

Que pode ser simplificado para:

Para simplificar ainda mais a notação chamarei tudo que está dentro dos parênteses de ‘W(barra)’. Este será o nosso componente de acúmulo de capital por trabalhador.

Por conveniências que discutiremos mais a frente, precisamos ajustar nosso modelo para converter retornos percentuais nos anos educação para retornos absolutos (1 ano a mais de educação gerando x% a mais de crescimento econômico no longo prazo). Podemos fazer isso definindo:

Substituindo na nossa forma funcional, chegamos a uma formatação final que nos permite decompor a produtividade do trabalho da seguinte forma:

Nossa forma funcional permite decompor a produtividade por hora trabalhada como função dos ganhos de capital humano (anos de escolaridade), de acumulação de riqueza/trabalhador (poupança menos depreciação do capital e crescimento populacional) e da PTF, que sai por resíduo dos demais controles aplicados

Como queremos um modelo que nos ajuda a explicar desvios de produtividade e não somente o crescimento da produtividade em si, vamos tomar razões entre as produtividades (tal como fizemos em nosso primeiro gráfico do post). Estamos justamente interessados nas razões de seus componentes do lado direito da equação, eles é quem vão nos ajudar a explicar as diferenças nas produtividades do trabalho.

Define-se os hiatos dos componentes da seguinte forma:

Podemos carregar a notação simplificada e resolver tanto para ‘y’ (que podemos observar):

E também para ‘A’ (que sai por resíduo dos componentes e de ‘y’):

É com este modelo que iremos trabalhar. Agora já podemos levá-lo aos dados.

Calibragem e dados

Vamos aproveitar um pouco da literatura disponível para a calibragem das nossas elasticidades ’α’ e β’. ’α’ sai direto da própria publicação de origem do modelo de Solow aumentado (Na conclusão do paper, Mankiw, Romer & Weil recomendam ‘1/3’).

Para ‘β’ usaremos um valor mais recente feito com econometria mais moderna, disponível em Lange & Topel (2004), o valor recomendado considerando a especificação de efeitos fixos para 10 anos é de 0.086. Os retornos aqui, no entanto, sao reportados como função de uma variação absoluta nos anos médios de escolaridade, exigindo portanto o ajuste que fizemos no final da forma funcional do nosso modelo anterior. A interpretacao direta deste resultado é que para cada um ano adicional de escolaridade média é esperado um aumento do produto por hora trabalhada em aproxidamente 8.6%.

A calibragem das nossas elasticidades serao portanto α=0.33... e β=0.086. Podemos seguir adiante com os dados a serem utilizados, de preferência usando fontes semelhantes às quais nossas elasticidades foram estimadas.

Os dados requerem múltiplas fontes, não é possível obter tudo de um lugar só. Resumo todas elas na mini-tabela abaixo:

Para os dados disponíveis de Barro-Lee de levantamentos de 5 em 5 anos, fiz uma interpolação linear para obter uma série anual de anos de escolaridade até 2015, para extrapolar os dados até 2019 assumo o crescimento médio anual da escolaridade dos últimos 10 anos de cada país, linearmente

Modelo pronto e bases de dados definidas, só resta organizar tudo e apresentar de maneira visual. Como é de costume, fiz o trabalho em uma planilha que deixarei pública ao fim do post. Para a produtividade relativa Brasil/EUA, montei a seguinte tabela:

Para melhor compreendermos a tabela, é preciso entender que o produto das contribuições das razões das variáveis ‘A’, ‘H’ e ‘W’ se igualam à razão da produtividade ‘y’, ou seja, elas já consideram as elasticidades ’α’ e β’.

Vamos explicar o resultado partindo de alguns exemplos didáticos. Peguemos um trabalhador brasileiro com iguais níveis de escolaridade e disponibilidade de capital produtivo que o americano médio, este trabalhador, no Brasil, mesmo assim produziria apenas 64% do que produziria este americano representativo (pouco menos de 2/3). Por outro lado, pensemos agora num trabalhador americano com escolaridade de um brasileiro médio, também com idêntica disponibilidade de capital, este trabalhador americano, trabalhando nos EUA, produziria 57% de um americano tradicional, em virtude de sua menor escolaridade.

O resultado mostra que apesar de pouparmos pouco, não poupamos assim tão menos que os americanos. No que tange o capital, nosso problema na acumulação de riqueza está na verdade numa taxa de depreciação do capital historicamente mais elevada e que se manteve constante ao longo de 50 anos. A acumulação de capital ainda assim representa uma perda de 12% do produto por hora trabalhada no Brasil em relação aos EUA.

O resultado também ilustra que os anos de escolaridade comprometem bastante a produtividade relativa do trabalho no Brasil. Apesar do Brasil ter sido capaz de fechar esse gap de escolaridade média com outros emergentes, ainda há margem para se acreditar que os efeitos desse aumento de escolaridade devem tomar um tempo para se materializar completamente.

Fonte: Barro-Lee data

O gap em relacao a países ricos, no entanto, segue elevado. O ritmo de convergência dele também se reduziu ao longo dos últimos anos.

Chegamos também ao resultado esperado de que o maior gargalo para o crescimento da produtividade brasileira está no ambiente institucional doméstico. Fatores qualitativos difíceis de mensurar, mas que ao mesmo tempo importam muito, são parte do que roubam pouco menos da metade do produto/hora trabalhada do brasileiro. Pense nas horas de trabalho dedicadas ao cálculo de impostos devidos ao fisco, nas péssimas condições do ensino básico e da saúde pública, ou até mesmo nos incentivos perversos que o sistema legislativo brasileiro impõe à concorrência de mercado.

O ambiente institucional, no entanto, é um desafio para qualquer economia emergente. Comparar-se com os casos de sucesso, apesar de poder trazer lições do que fazer, pode nos levar a crer que certas políticas de mundo desenvolvido são factíveis para o Brasil. Pode não ser assim tão fácil, e é preciso considerar os incentivos políticos colocados para cada país. Tratarei das particularidades qualitativas brasileiras na segunda parte deste post.

Considerações finais

Este post toma como inspiração um artigo do Samuel Pessôa na revista Lide de um mês atrás, disponível neste link. Recomendo a leitura do material dele na íntegra. Partimos de especificações de modelos neoclássicos parecidos e chegamos em conclusões semelhantes.

O material estudado neste post está disponível em uma planilha neste link. Obrigado por chegar até aqui e bons estudos a todos.

Nota ao leitor: este post foi editado para corrigir um erro de interpretação dos resultados da pesquisa em Lange & Topel (2004). O post anterior assumia que a elasticidade de 0.086 era consistente com um retorno em cima da variação percentual nos anos de escolaridade de forma a já considerar os rendimentos decrescentes da educação. No entanto, o resultado empírico reporta tal elasticidade em variação absoluta do número de anos de escolaridade média, o que aumenta consideravelmente o peso das diferenças de anos de escolaridade no resultado final e consequentemente a interpretação destes mesmos resultados da versão anterior deste post.

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Felipe Camargo
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Written by Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.

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