Brasil, taxa de câmbio e produção industrial
Nesta entrada do blog, farei uma análise exploratória empírica e teórica de um tema que há muito me intriga no debate público da macroeconomia brasileira: o papel da taxa de cambio na producao manufatureira. O debate consiste em um lado na defesa da administracao da taxa de câmbio do país, de forma a mantê-lo em um patamar considerado saudável para promover o crescimento da indústria doméstica, no outro, céticos de que intervencao estatal corrompida pelo lobby possa ser a resposta.
O argumento é de uma intuicao muito simples: uma moeda desvalorizada desempenha três papéis, o de encarecer produtos importados, incentivando o mercado doméstico a optar por bens produzidos no Brasil, o de oferecer competitividade a industria doméstica na exportacao de seus produtos, uma vez que uma menor quantidade de dólares oferecerá uma receita em reais maior, e finalmente, o barateamento dos custos laborais domésticos, já que permite que um investidor estrangeiro compre mao de obra brasileira com menos dólares do que compraria caso contrário.
Do outro lado desse debate estao os economistas céticos, que desconfiam da capacidade da política econômica de promover incentivos para a indústria sob o risco destes se tornarem uma reserva de mercado: o industrial local lucra com cambio depreciado e usa parte deste lucro como lobby para transformar uma política inicialmente temporária de apoio a indústria em um política permanente de transferencia de renda do consumidor, que paga caro por produtos industrializados locais, para o industrial, que vende caro por um produto de pior qualidade.
Neste debate, eu tendo a nao tomar nenhum dos dois lados. Apesar de também ser cético quanto a efetividade da administracao de um câmbio depreciado para a indústria, o motivo do meu ceticismo é outro. Olhando para os dados, a depreciacao do câmbio brasileiro nao promoveu o efeito esperado de aumento do produto manufaturado doméstico. Para explicar como isso pode ter acontecido, na primeira parte deste texto apresentarei a minha análise dos dados. Na segunda parte apresentarei um modelo teórico que explicaria de que forma a intuicao por trás do “câmbio industrial” estaria incorreta, ou, no mínimo, incompleta.
Parte 1 — “Sangrando” os dados
A história da economia brasileira é repleta de ciclos de sobreaquecimentos e recessoes. Esses ciclos sao facilmente decompostos nas séries de tempo de atividade, precos, cambio e juros, e é exatamente com eles que vamos trabalhar.
Nos últimos 10 anos, o real observou uma forte desvalorizacao acompanhada de muita volatilidade, desvalorizacao essa que seria propícia para apoiar uma recuperacao da indústria manufatureira brasileira.
Apesar da forte desvalorizacao do real, que somente se equiparou com depreciacoes cambiais de países com desequilíbrios monetários e fiscais muito graves, esta se distinguiu pela gradualidade. Refletiu uma deterioracao dos fundamentos para o crescimento da economia brasileira, que também decepcionou.
Olhando para estes dois gráficos de cara uma pergunta vem a tona: como poderia a indústria manufatureira sofrer mais do que o resto da economia frente a uma depreciacao cambial do tamanho da que foi? Será que faltou mais depreciacao cambial ainda para que o produto manufatureiro nacional prosperasse? Será que outras variáveis importam muito mais do que o cambio para a producao industrial? Juros talvez? Veremos.
Nao apresentamos os dados em tendencia por acaso. Vamos correlacionar os desvios da taxa de cambio em relacao a sua tendencia com os mesmos desvios da producao manufatureira. A ideia é que esses desvios mostrariam que choques consecutivos nas duas variáveis promovam o efeito esperado pela intuicao teorizada do “cambio industrial”. Para a amostra, escolhi analisar os dados durante 2003–2019, uma vez que a crise do coronavirus veio acompanhada de uma sequencia de choques em múltiplas frentes, marcando um período de quebra de correlacao desnecessário para o propósito de uma análise das relacoes em condicoes normais de temperatura e pressao.
O efeito contrário observado sugere que a teoria intuída pelos defensores da administracao da taxa de cambio nao se verifica numa primeira visita simples aos dados. Mas vamos levar isso adiante, vamos controlar essa correlacao entre taxa de cambio e producao manufatureira com outras variáveis que possam ter poluído a nossa análise.
Em um primeiro momento, é importante reconhecer o potencial caráter endógeno entre taxa de cambio e atividade economica de forma geral. Um país que cresce muito é um país que atrai mais investimento estrangeiro, que por sua vez apreciaria a taxa de cambio e faria a industria crescer. O Brasil pode ter simplesmente visto uma depreciacao cambial concomitante com mau desempenho industrial simplesmente porque sua economia nao desempenhou bem nos anos analisados. Isso nao é verdade para uma boa parte da amostra, mas faz sentido incluir um controle, de forma que vamos usar como um primeiro controle o hiato do produto junto ao hiato do cambio na nossa análise.
Em um segundo momento, faz sentido também incluirmos alguma variável que capture o custo do crédito, uma vez que esse determina os custos da industria e ao mesmo tempo afeta a atratividade por títulos de renda fixa brasileiros. Incluiremos o hiato da taxa Selic por este motivo.
Usarei duas estratégias econométricas, uma através de um modelo ARDL, do qual já expliquei como funciona aqui neste blog, outra através de um VAR, que vai tratar todas as variáveis como se fossem endógenas umas as outras (caso padrao em macroeconomia).
O resultado do modelo ARDL confirma a relacao encontrada no gráfico anterior. O sinal negativo da taxa de cambio defasada sugere que depreciacoes cambiais estao associadas a quedas no produto da manufatura brasileira, mesmo depois de controlarmos para efeitos de choques de demanda e da política monetária. Vamos ver o que uma especificacao VAR nos oferece.
O impulso resposta do modelo VAR estimado usando as mesmas variáveis anteriores em um contexto endógeno nos traz a mesma mensagem. Depreciacoes cambiais estao realmente associadas a subsequentes quedas no produto manufatureiro. A história que ouvimos anteriormente parece ser incompleta. Por isso, vamos tentar agregar um pouco mais a teoria para entender o que pode estar acontecendo.
Parte 2 — “Na prática a teoria é outra”
Na tentativa de encontrar uma explicacao teórica para este fenomeno, resolvi adotar o método neoclássico comum: vou cuspir um modelo de otimizacao, contar uma historinha, se ela colar e o rigor matemático estiver do meu lado, eu fiz um bom argumento.
O modelo é o seguinte. Vamos pensar num problema da firma clássico, com algumas extensoes pertinentes a discussao:
Neste problema, o industrial tem interesse em maximizar seu lucro, enfrentando uma tecnologia descrita por uma funcao de producao, uma receita que é fruto da média ponderada do produto industrializado vendido dentro ou fora do país (alfa sendo a parcela vendida no mercado doméstico) os custos associados a producao, onde alguns sao localmente produzidos e outros precisam ser importados. Por fim, a parte mais importante do modelo: a escolha pela parcela produzida a ser exportada é definida por uma funcao que depende da taxa de cambio, ou seja, se o cambio se depreciar, o industrial preferirá exportar, mas também acompanhada de uma restricao de demanda, ou seja, somente uma parte da sua producao total poderá ser exportada, nunca toda ela.
Restringir a parcela de producao a ser exportada tem uma finalidade importante: muitos industrializados brasileiros nao sao competitivos em todos os mercados. Alguns de seus manufaturados podem ser vendidos na Argentina, no Chile, já foram muito vendidos na Venezuela, mas nao poderiam competir com bens substitutos chineses, por exemplo. Logo, faz sentido pensar que o industrial brasileiro até gostaria de vender mais para fora do país e se aproveitar de uma eventual taxa de cambio mais depreciada, mas nao consegue porque seu produto nao é competitivo fora de um ambiente cativo de incentivos tarifários (como é o caso do Mercosul).
A funcao escolhida para a restricao de vendas também nao foi escolhida por acaso. Ela é estritamente decrescente e assintótica em um valor % fixo, conforme abaixo:
Logo, se admitimos que a firma já se encontra no nível ótimo de escolha da sua parcela de producao para exportacao (definida por alfa_estrela no gráfico acima), basta fazermos um processo tradicional de otimizacao do lucro pela escolha da quantidade de insumos a serem utilizados na producao.
Encontrando x1 e x2 que maximizam o lucro, temos:
E o produto ótimo será portanto aquele onde plugamos os insumos ótimos na nossa funcao de producao:
Recuperando a ponderacao de receita de vendas domésticas e exportadas, temos:
Neste momento, podemos tomar a derivada parcial do cambio nessa funcao de producao que maximiza o lucro do produtor industrial. Se essa derivada for estritamente negativa, chegaremos ao resultado que esperamos. A derivada é um pouco complicada de fazer, porque exige uso sequencial da regra do produto e a regra da cadeia dentro da mesma derivada, mas se eu nao tiver cometido nenhuma barbeiragem no meio do caminho e após rearrajar tudo algebricamente para simplificar ao máximo, devemos chegar a este resultado:
A derivada é, para a grande maioria dos casos de uma industria (com ganhos decrescentes de escala), estritamente negativa. Para comprovar isso, admiti distribuicoes normais com alguma variabilidade em torno de certos parametros que julguei razoaveis e testei multiplas iteracoes dessa forma funcional da derivada do cambio. O resultado mostra uma curva concava estritamente negativa.
Para resumir essa matemática toda, o importante é a mensagem e a intuicao por trás dessa conta: nas condicoes colocadas por este modelo, um produtor industrial que nao consegue escoar maior parcela da sua producao para o exterior vai preferir produzir menos durante depreciacoes cambiais, isso porque nao poderá colher os benefícios de uma receita maior em dólares, dado um mercado cativo estrangeiro já totalmente abastecido de seus produtos. Qualquer decisao de produzir mais sem poder exportar traria para ele um aumento de seus custos na margem, uma vez que parte dos insumos para producao sao importados e encarecem durante a depreciacao cambial. O industrial calibra custo com receita e prefere produzir menos, logo, chegamos em uma teoria que casa perfeitamente com os dados.
Por hoje é isso. Me aventurar na micro nao foi fácil e o post acabou ficando mais técnico do que eu esperava. Foi divertido. Até a próxima.