Sobre o problema da opulência e o paradoxo do mérito

Felipe Camargo
3 min readNov 25, 2020

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Seria um projeto de enorme ambição para qualquer indivíduo tentar desconstruir uma dicotomia tão historicamente consolidada quanto as bandeiras do Igualitarismo e da Meritocracia. Frequentemente damos estas duas ideias como auto-excludentes, mas será que este seria realmente o caso?

A concepção de mérito sobrevive de forma fragilizada na pretensão de que nós seríamos capazes e portanto responsáveis de perceber o melhor dentre os vários, o mais esforçado dentre os inaptos e os naturalmente talentosos. Não obstante, é de equivalente inocência desconsiderar que a capacidade de reconhecer uma virtude têm amparo no uso rigoroso da razão, na investigação dos fundamentos que permitem uma organização social bem-sucedida. Distinguindo os especialistas que defendem uma real impressão da realidade de um potencial maniqueísmo político autointeressado.

Além disso, somos capazes de notar que julgamentos sobre terceiros nos exigem uma profunda habilidade de empatia para com a situação destes: uma pessoa pobre que ficou rica, ao ser julgada por alguém que desconhece o peso de tal situação inicial, remotamente seria sopesada com digna fidelidade. A opulência nos amaldicoa com uma falta de discernimento moral sobre aqueles que que vivem circunstâncias radicalmente distintas das nossas. E tal esforço empático que nos permite conhecer o diferente sempre se fará mais espontâneo e viável num cenário onde indivíduos dotem de uma estratificação social menos complexa. Toda e qualquer iniciativa associada a uma tentativa de uniformizar tais complexidades, reduzindo o impacto do acaso no estado inicial de cada indivíduo ao longo do encalço de seu destino, é, portanto, intrínseca de virtude.

É neste contexto que enunciamos a existência do “paradoxo do mérito”: a noção de que jamais seríamos capazes de saber a quem algo é digno se desconsiderarmos o esforco heterogêneo oriundo dos diferentes estados iniciais para que cada indivíduo esteja em um mesmo patamar intelectual, economico e/ou social. Por muito subapreciamos a importancia de tal habilidade empática, que possui, até mesmo, benefícios internalizáveis claros.

Através de uma ótica mais introspectiva e por força de consistência lógica, é possível perceber a pertinência de dois questionamentos básicos da ideia de merecimento pessoal:

  1. Como mensuraríamos, se não através da constante associação de nossas oportunidades com a de pares comparáveis à nós, o impacto do acaso sobre aquilo que consideramos nossa conquista?
  2. Para além disso, qual mérito poderia ser maior do que o de nos aproximarmos da conviccao de que somos dignos daquilo que temos?

Identificar o(a história do) próximo é a ferramenta mais tangível que temos para conhecermos a nós mesmos, e se nao formos capazes de identificar os outros, nao temos base dialética para definir aquilo que pensamos ser. Nao há uma ideia de si sem o outro, pois é impossível cognitivamente reduzir-se a algo que nao seja consequencia do contraste com o meio.

Não é incomum nos confrontarmos com certa dificuldade em encontrar nosso próprio valor em vida, nada faz mais sentido para um do que proteger-se da possibilidade de um sentimento de desconstrução da auto-estima. Para tanto, é preciso livrar-se do Problema da Opulência: o vício, frequentemente associado aos dotados de alguma riqueza material ou cognitiva, em acreditar que o que se tem é, por condição suficiente, fruto do próprio esforço, desagregado do conhecimento de que estamos para sempre condicionados à condicoes imponderáveis. E, por isso, orientados fortemente pela incapacidade de distinguir, mesmo que até imperfeitamente, entre o juízo e a sorte.

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Felipe Camargo
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Written by Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.

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