Recessão ou inflação? Entendendo a escolha do Copom

Felipe Camargo
8 min readJun 18, 2022

Neste post do blog, volto a escrever sobre política monetária brasileira. O assunto é recorrente por aqui, e se você gosta talvez se interesse em ler posts anteriores sobre. Em muitas maneiras posts antigos servem como base para nivelar como penso/modelo o futuro da taxa Selic, complementando o conteúdo de cada texto.

Em seu último comunicado, o Comitê de Política Monetária (Copom) decidiu por unanimidade aumentar a taxa de política monetária (Selic) em 0.5pp para 13.25%. Ao longo do comunicado, o Copom enfatizou que “diante de suas projeções e do risco de desancoragem das expectativas para prazos mais longos, é apropriado que o ciclo de aperto monetário continue avançando significativamente em território ainda mais contracionista”. Deixando em aberto, portanto, a possibilidade de novas altas na taxa de juros.

A preocupação com a inflação é totalmente justificada, afinal o aumento do IPCA está em 11.7% nos doze meses até maio. Em sua última divulgação, o Boletim Focus já mostrava que o consenso de mercado só esperava que a inflação fosse voltar para sua meta de 3% em 2025. Na expectativa de 12 meses a inflação seguiria se distanciando da sua meta:

Por isso, não é sem razão que agentes de mercado receberam com certa desconfiança a possibilidade do Copom parar de subir juros agora que chegou aos 13.25%. Muitos acreditam que o cenário prospectivo para a previsão do modelo do Banco Central para a inflação dos próximos anos usando parâmetros do último Focus é otimista demais. Vamos extrair o cenário de referência mencionado no comunicado aqui:

“- No cenário de referência, a trajetória para a taxa de juros é extraída da pesquisa Focus e a taxa de câmbio parte de USD/BRL 4,90*, evoluindo segundo a paridade do poder de compra (PPC). Esse cenário supõe trajetória de juros que termina 2022 em 13,25% a.a., reduz-se para 10,0% em 2023 e 7,50% em 2024. Optou-se por manter a premissa de que o preço do petróleo segue aproximadamente a curva futura pelos próximos seis meses, terminando o ano em US$110/barril, e passa a aumentar 2% ao ano a partir de janeiro de 2023. Além disso, adota-se a hipótese de bandeira tarifária “amarela” em dezembro de 2022, de 2023 e de 2024.

- Nesse cenário, as projeções de inflação do Copom situam-se em 8,8% para 2022, 4,0% para 2023 e 2,7% para 2024. As projeções para a inflação de preços administrados são de 7,0% para 2022, 6,3% para 2023 e 3,3% para 2024. As projeções do cenário de referência não incorporam o impacto das medidas tributárias sobre preços de combustíveis, energia elétrica e telecomunicações que estão em tramitação. O Comitê julga que a incerteza em torno das suas premissas e projeções atualmente é maior do que o usual e cresceu desde a última reunião.”

As críticas sobre o cenário de referência do Copom se distribuem em diversos aspectos, frequentemente uma combinação deles: o uso de um cenário Focus defasado (do final de abril, em virtude da greve dos servidores federais), o preço do petróleo, a taxa de câmbio e as bandeiras tarifárias de energia eletríca, etc. Essas críticas sao válidas, principalmente porque tratam das premissas para trajetórias exógenas que entram nas projecoes da inflacao do Banco Central e portanto justificam suas decisões. Essas premissas são difíceis de se discutir, porque tratam de questões discricionárias ou de variáveis muito voláteis e incertas.

Muitos analistas também criticam o Copom por considerar o que BCB está entregando uma convergência da inflação muito lenta, defendendo que se ela não estiver na meta em dezembro de 2023 em suas projeções, os juros deveriam seguir subindo muito mais.

Há uma questão técnica aqui, portanto, que é a que eu pretendo endereçar neste tópico: seria de fato a redução no ritmo de altas da taxa Selic, considerando tais premissas, apropriada para garantir a convergência da inflação para a meta no “horizonte relevante”?

O termo “horizonte relevante” descreve o período no qual a política monetária surte maior efeito sobre a atividade econômica e a inflação, considerando o efeito defasado da taxa Selic no crédito bancário, na resposta de poupança das famílias e das firmas de revisar preços em contrapartida a uma mudança na demanda doméstica (tipicamente convencionado em algum momento entre 9 à 24 meses depois das decisões de política monetária).

Para facilitar o exercício, vou dividir a pergunta em duas: 1) Seriam as premissas do BCB apropriadas para as projeções que ele divulga? e 2) Qual seria o custo de se apertar ainda mais nos juros para entregar inflação na meta já em dezembro de 2023?

Vamos para as contas.

Projetando inflação com um modelo de pequeno porte

Para construirmos uma versão simples de um modelo de pequena economia aberta (pequeno porte) precisamos de um sistema de equações para descrever quatro variáveis fundamentais na determinação da trajetória da inflação e da Selic. A própria inflação, a Selic, um hiato do produto como métrica de demanda e a taxa de câmbio. O modelo ficará disponível em um Excel ao fim do post para aqueles que queiram brincar com ele ou auditá-lo.

Nossa Curva IS, que descreve o hiato do produto ‘y’ como função de seu passado, um hiato de juro (‘r’ menos ‘c3*b(5y)’, nossa proxy para o juro neutro) e choques de demanda
Nossa Curva de Phillips, que determina a inflação ‘π’ a partir do seu passado, da inflação importada ‘π(imp)’ e da expectativa de inflação, somadas por pelo efeito da demanda e seus respectivos choques
Nossa regra de política monetária, que determina que a taxa Selic ‘r’ deve ser decidida a partir dos componentes anteriormente mencionados e do juro neutro ‘c3*b(5y)’
Uma regra de paridade da taxa de juros, que determina que a variação da taxa de câmbio nominal ‘ϵ’ deve ser função do risco-país ‘θ’, dos diferenciais de juro nominal Brasil-EUA e dos diferenciais de inflação Brasil-EUA

Faremos também algumas definições úteis para o nosso modelo:

Nossa inflação importada é definida como a variação log-percentual do produto entre a taxa de câmbio e um índice internacional de commodities (aqui, o CRB). Como precisamos anualizar essa taxa de variação, multiplicamos ela por 400 (4*100)
Definimos que a nossa expectativa de inflação é ancorada na meta a partir de uma regra de movimento que considera a inflação passada e sua meta atual ‘π*’

Com essas seis equações, podemos descrever um modelo de pequeno porte tal como o que o BCB trabalha. Naturalmente um modelo como este necessita de parâmetros, e para este exercício escolhi calibrá-los para atender um bom fit histórico assim como fit as expectativas de mercado nas projeções do modelo.

Em um passo final, precisamos também descrever trajetórias futuras para as variáveis exógenas do nosso modelo. Sem elas não poderíamos obter uma projeção. Essas são as minhas hipóteses:

Aqui, imagino que o índice de commodities deva comecar a normalizar para o seu nível pré-guerra em 2022 T4, o Fed deva conduzir um aperto monetário contracionista até 3.75–4% de juro nominal, a taxa DI de 5 anos deve ser pressionada durante o ciclo do Fed e que o risco-país brasileiro deva seguir de lado e só comecar a normalizar para sua média histórica em 2023

Neste cenário, obtenho a seguinte projeção do nosso modelo:

Essa projeção, condicionada para a calibragem utilizada, retorna uma inflação de 8.5% e 4.7% para o fim de 2022 e 2023, respectivamente. Muito em linha com a última projeção disponível pelo Boletim Focus mencionado anteriormente e 0.7pp acima da inflação projetada pelo Banco Central em 2023. Quando colocamos sob perspectiva que o Copom utiliza uma premissa de inflação importada menos otimista do que a minha (evoluindo o preço do barril de petróleo e a taxa de câmbio pela inflação a partir de janeiro de 2023), vemos que o modelo do BCB de fato mostra uma projeção um tanto otimista para seus demais componentes, ou até mesmo um pass-through bem mais baixo do que o histórico por parte do câmbio e das commodities. Só assim a inflação poderia chegar a 4% já em 2023. Essa é a resposta para a pergunta 1) que escolhemos responder no início do exercício.

O modelo, apesar de simplificado, se mostra bastante competente em resumir o conjunto de fatores que determinam a projeção dos agentes para este ano e o próximo. Parece razoável portanto usá-lo para simular cenários de política monetária e descobrir quanto de juros precisaríamos a mais para entregar uma inflação na meta já em 2023.

Cenários de aperto monetário

Para os cenários de aperto monetário, vamos submeter nosso modelo a um choque exógeno de taxa de juros por parte do BCB e deixa-lo resolver a trajetória prospectiva de todas as suas variáveis até dezembro/23 endogenamente, mantendo todas as variáveis exógenas constantes.

Concentrando os aumentos da Selic nas reuniões do próximo trimestre (2022 T3), teríamos a seguinte tabela-resumo de trajetórias da inflação para um respectivo aumento da Selic:

Resultados consistentes para um aperto monetário totalmente concentrado em 2022 T3 olhando o fim do período de cada ano

Vemos que somente um choque de 10 pontos percentuais na Selic no próximo trimestre seria suficiente para trazer a inflação para o centro da meta de 3.25% ao fim do ano que vem. Um número assustadoramente alto, até mesmo quando consideramos o atual aperto monetário sem precedentes que observamos na Selic durante 2021 até agora. O custo de tal decisão política seria colocar o Brasil em uma recessão bem mais aguda do que aquela já prevista pelo modelo nas condições dadas pela política monetária hoje:

Neste cenário, a Selic chegaria a 23.25% ao ano, gerando uma abertura de 2.9pp no hiato do produto adicionais aos -3% já esperados pelo cenário base. O que, dado o crescimento potencial brasileiro próximo de 1–1.5%, se traduziria numa provável recessão técnica no fim deste ano até a primeira metade do ano que vem. A inflação ficaria bem mais baixa também, chegando próxima de zero em 2024 assumindo que a nossa trajetória para o preço das commodities se mantenha consistente. Esse é o custo de um aperto monetário tal como desejam aqueles que querem ver inflação na meta já no ano que vem que responde a pergunta 2) proposta.

Tendo isso em perspectiva, não é nada incompreensível a decisão do Copom de optar por um gradualismo neste momento, dado que caminhou até aqui (o maior aperto monetário entre os países emergentes com metas de inflação visto desde 2021 até agora). O exercício também aponta que, se o Copom tiver algum compromisso com o seu cenário de referência (inflação de 4% ao fim de 2023), precisaria subir os juros 4pp a mais do nível atual (para 17.25%). Não acredito que ele queira fazê-lo, de qualquer forma, e prefira acomodar um pouco mais de gradualismo na inflação tendo em vista o efeito contracionista dos juros na atividade já contratado para o ano que vem.

Considerações finais

O debate técnico sobre a política monetária no Brasil é sempre bastante caloroso na grande mídia. Muitos analistas misturam nesse debate toques de economia positiva (o que é) com normativa (o que deve ser), e acabam por defender o que o banco central deveria fazer ao invés de oferecer aos não-economistas uma perspectiva imparcial sobre o futuro. Eu espero ter deixado claro neste post que não tenho qualquer viés entre mais ‘inflação e crescimento’ ou menos ‘inflação e crescimento’ no curto prazo. Ambas são decisões políticas que cabem a este mandato do banco central resolver e viver sob as consequências dessas decisões. O que digo aqui é o que acho que vai acontecer, com base nas contas que sei fazer.

A planilha que usei para a análise do post de hoje está anexada neste link. Obrigado por chegar até aqui e bons estudos a todos.

--

--

Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.