Por que os economistas erraram o PIB em 2023?
Nesta entrada do blog analisarei os motivos para o erro de projeção do crescimento do PIB de 2023 feita pelos economistas brasileiros.
Como muitos sabem, ao nos aproximarmos das últimas divulgações de dados de 2023, a economia brasileira cresceu mais do que o esperado. Esse erro de projeção tem sido usado para testar a credibilidade dos economistas que trabalham produzindo essas projeções, como este que aqui escreve. Logo, este post também é uma prestação de contas.
Errar o crescimento para baixo em tempos normais deveria ser considerado boa notícia. A economia esta indo melhor do que o esperado. Mas infelizmente, nos tempos polarizados de hoje, isso é um problema. Há os que colecionam razões para desmerecer os especialistas que desafiam crencas políticas populares. Devem pensar que a vida seria mais fácil se a gente pudesse acreditar no que quisesse (risos).
Ao longo do texto pretendo ilustrar os muitos desafios subjacentes à tarefa de projeção do PIB. Vamos aos números.
O tamanho do erro
Apesar de ainda não termos o dado do PIB do último trimestre do ano, é bastante razoável trabalhar com a última projeção do Boletim Focus do Banco Central do Brasil disponível até agora, divulgada no dia 26/12. Para a projeção do início do ano, usarei o mesmo relatório da primeira semana do ano, 6/Jan.
De acordo com os dois relatórios, a mediana de pelo menos 100 instituições projetava que a economia brasileira iria crescer apenas 0.65% em 2023. Chegamos em dezembro e a expectativa para o mesmo ano saltou para 2.92%. Uma mudança de 2.3 pontos percentuais.
Para melhor ilustrar o que isso significa, a economia cresceu mais de quatro vezes o esperado, e o tamanho do erro é equivalente ao PIB ter adiantado um ano a mais de crescimento medio. Tratando-se puramente de taxas de crescimento, isso seria equivalente a ter um volume de produto como este que estamos observando agora so em 2024.
A seguir, listo as razões que consegui identificar para um erro desta magnitude.
Razão no.1: Revisão dos dados históricos
No começo de 2023, economistas olhavam para números oficiais até então divulgados pelo IBGE bem diferentes do que os números que conhecemos hoje. Isso acontece porque a estatística das contas nacionais sofre revisões históricas periódicas, que muda consideravelmente a tendência dos últimos dois anos anteriores nos dados observados.
Apesar dessa revisão ser recorrente, não é uma tarefa “técnica” viável saber o que se passa nos bastidores do IBGE antes de cada divulgação. Não é possível prever se uma eventual revisão histórica fará o PIB maior ou menor em algum período especifico.
Na divulgação do dado do terceiro trimestre de 2023, que revisou as contas nacionais trimestrais de 2021 e 2022, vemos que o IBGE reduziu o nível do PIB nestes anos.
Vemos no gráfico que no último dado divulgado o PIB de 2022 ficou consideravelmente (0.24 ponto percentual [ppct]) menor do que o dado que os economistas trabalhavam na época. Mais evidente ainda foi a mudança do carrego estatístico (carry over) do crescimento que 2022 trazia para 2023, que na divulgação mais recente é 0.6ppct superior ao carrego estatístico original do fim do ano de 2022.
A revisão nos dados por parte do IBGE, sozinha, explicaria um quarto do erro de crescimento do ano (0.57/2.3).
Razão no.2: Choque positivo de oferta
Outra surpresa positiva para o crescimento brasileiro em 2023 veio da oferta. Apos um ano difícil de seca em 2021 que agravou a inflação na época, tivemos um clima favorável dois anos depois para a produção de grãos.
De acordo com o IBGE, o Brasil se beneficiou de safras recorde ao longo do ano inteiro, favorecendo enormemente a produção de grãos. Várias consequências positivas podem ser derivadas disto, listo abaixo algumas.
- Uma taxa de câmbio mais favorável graças a uma balança comercial mais superavitária (sobretudo pelas exportações de soja);
- Produtores que usam grãos como insumo para produção (como pecuaristas, ou manufaturados relacionados) respondem a uma queda em seu custo marginal com um aumento na produção de seus produtos finais, aumentando a oferta de carne e todos os produtos derivados dos bens agrícolas agora em maior abundância;
- Preços finais de bens em maior oferta caem, permitindo que as famílias brasileiras tenham maior espaço em seus orçamentos para consumir serviços ou outros tipos de bens.
Nas contas nacionais trimestrais do IBGE, no entanto, não é possível observar em grande detalhe o que acontece a nível das firmas ou famílias. Fato consumado é que observamos uma economia crescendo mais rapidamente este ano em função disto. Quando olhamos a distribuição do PIB por setores, notamos que todos os setores produziram além de suas respectivas tendências históricas em 2023.
Naturalmente, é muito difícil isolar quanto desse excesso de crescimento é fruto exclusivamente do choque positivo de oferta agrícola devido a condições climáticas.
O que proponho então é um piso bem conservador: comparar o volume do produto agrícola observado contra sua tendência histórica e assumir que esta diferença foi oriunda do choque de oferta. Com isso temos que o PIB teria sido 0.67ppcts menor este ano tivesse a agricultura produzido somente aquilo que a sua tendência teria indicado para o ano. Usando este número, temos que ele representaria quase um terço do erro de crescimento do ano (0.67/2.3).
Os motivos 1+2 explicam mais da metade do erro da projeção de 2023 até agora ([0.57+0.67]/2.3=0.54).
Razão no.3: Crescimento global melhor do que o esperado
2023 foi um ano muito intrigante para os economistas. Há muitas décadas (se não tiver sido a primeira vez) o mundo não experimentava uma resposta coordenada de política econômica contracionista, principalmente monetária, como a que vivemos hoje.
O último ciclo inflacionário da economia americana havia sido nos anos 70, durante os dois choques do petróleo. Naquela época, os instrumentos de política fiscal e monetária globais não eram amplamente difundidos e, para a grande maioria dos paises, sequer existia. O choque atual foi um teste ao nosso relativamente recente sistema de metas de inflação.
Que efeito esse aperto monetário global deveria ter tido no crescimento do PIB mundial? Certamente negativo, mas de qual magnitude? O desafio era advinhar aquilo que a teoria previa, mas com dados completamente defasados. Os últimos 50 anos de produção acadêmica permitiram esgotar possibilidades, mas a incerteza associada às estimativas de elasticidade juro ao PIB sempre foram enormes. Ainda são.
O que aconteceu foi que o crescimento econômico global foi de maneira geral mais positivo do que o esperado até agora. De acordo com o FMI, a diferença entre o crescimento projetado no último World Economic Outlook (WEO) deste e do ano passado (publicados em outubro), foi de que o PIB global deste ano deve crescer 0.31ppct a mais do que o esperado. Erro de projeção este que foi proporcionalmente maior nas economias avançadas.
Estimar o efeito que este erro de crescimento produz no crescimento domestico é claramente um exercício que requer rigor. No entanto, para o post de hoje, deixarei as coisas simples. Para aproximar o que significa um erro de 0.31ppct no crescimento global para o crescimento brasileiro, faço uma simples regressão bivariada do PIB brasileiro contra o PIB global. Com a devida licença dos colegas econometristas:
Com uma elasticidade aproximada de 1.2 (maior do que a unidade, como esperado), podemos associar um erro de crescimento no PIB global de 1ppct a um erro de crescimento de 1.2ppct no crescimento brasileiro. Se aplicamos essa conta, temos que 0.31*1.2=0.37 aproximadamente. De posse deste número, ele representa quase um sexto do erro de crescimento do ano (0.37/2.3).
Os motivos 1+2+3 explicam mais de dois terços do erro de projeção em 2023 até agora ([0.57+0.67+0.37]/2.3=0.7).
Razão no.4: Afrouxamento fiscal
Enquanto é claro que uma projeção de crescimento precisa levar em consideração uma projeção igualmente acurada de medidas do governo, também é verdade que essas medidas do governo são fruto de decisões tomadas em tempo real.
O governo Lula III prometeu zelar pelas contas públicas, dentro daquilo que fosse possível, mas não foi capaz de agir para impedir a forte queda na arrecadação tributária e frear as compensações dos aumentos de gastos indexados à inflação de anos anteriores.
Sem entrar de qualquer maneira no mérito político da questão, é claro que um déficit primário mais elevado deve ter uma contrapartida no crescimento econômico. O maior endividamento público é oriundo de um imposto que deixou de ser cobrado ou um corte de gasto que deixou de ser feito, permitindo que as famílias possam consumir mais.
Voltando aos dados dos boletins Focus do início e final do ano, temos que o resultado primário foi 0.9ppct do PIB pior do que o esperado no início de 2023.
Sabemos também que o multiplicador fiscal instantâneo desta ocasião deve ser bastante conservador, sabendo que este resultado é grande parte fruto de menor arrecadação tributária e gasto com a folha do funcionalismo. Acredito que 0.3 seja um valor razoável. Fique à vontade para me criticar por este chute ou fazer o seu.
Logo, podemos simplesmente multiplicar 0.3*0.9 = 0.27, sendo este o número que adicionaria ao crescimento do ano caso soubéssemos qual seria o resultado primário do governo no início do ano. Usando este número, temos que ele representaria quase um nono do erro de crescimento do ano (0.27/2.3).
Os motivos 1+2+3+4 explicam mais de quatro quintos do erro de projeção em 2023 ([0.57+0.67+0.37+0.27]/2.3=0.82). Com isto, fico bastante satisfeito. Razões adicionais seriam especulativas demais e com pouco ganho marginal explicativo.
Considerações finais
Este post foi um exercício sistemático de prestação de contas aos leitores do blog. Economistas que trabalham com projeção precisam ser capazes de reconhecer que suas análises partem de alicerces bastante frágeis (nem os dados estão cravados em pedra), assim como consumidores deste tipo de informação precisam entender que não há alternativa melhor do que confiar em um economista que trabalha com seriedade e boa intenção.
Este post é o último deste blog. A partir de agora concentrarei minhas atividades no Substack para postagens em inglês e de conteúdo mais amplo/técnico. Recentemente aceitei uma posição profissional que compete com o conteúdo que produzo aqui. Se quiser ler minha cobertura de Brasil, procure meus relatórios na Oxford Economics.
Minha jornada com este blog foi prazerosa e produtiva. Obrigado pela confiança dos colegas que me acompanharam até aqui. Bons estudos.