Modelando o mercado de trabalho brasileiro

Felipe Camargo
7 min readOct 2, 2022

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Tirando a poeira do blog, volto hoje para escrever sobre mercado de trabalho. A motivação é bastante evidente para quem vem acompanhando os dados recentes de criação de vagas de emprego e da taxa de desemprego, que atingiu seu nível mais baixo (8.9% em agosto) desde o segundo trimestre de 2015, quando o Brasil foi acometido pela crise do esgotamento da Nova Matriz Econômica (NME).

O objetivo deste post é mais didático, de oferecer alguns insights básicos sobre identidades e definições usuais utilizadas para se compreender o mercado de trabalho de uma maneira ‘top-down’, começando do maior agregado para chegar nos números de emprego e desemprego. Em sequência, discuto uma maneira simples mas muito prática de representar a dinâmica dos salários reais em uma economia de concorrência monopolística, isto é, que tende para um longo prazo competitivo, mas que no curto prazo comporta rigidez salarial. Sem mais historinha, vamos fazer as contas.

Definições algébricas

Pela maior agregação possível, o mercado de trabalho de qualquer economia começa do seu estoque de pessoas em idade de trabalhar (também conhecida por População em Idade Ativa, a PIA). O IBGE, assim como muitos outros escritórios oficiais de estatística, convencionam que pessoas em idade de trabalhar são aquelas que possuem de 15 a 64 anos de idade, abrangendo aproximadamente 150 milhões de pessoas de um total de 210 milhões de brasileiros. Esse é o número básico sobre o qual aplicaremos alguns filtros para chegar até o número de empregados e desempregados.

Sobre esses 150 milhões da PIA, extraímos aqueles que participam da força de trabalho, isso é, que estão ou ocupados, trabalhando, ou em processo de busca de emprego, os desocupados. O IBGE tem um diagrama bastante útil que resume essa desagregação de forma didática:

Fonte: IBGE

Do diagrama podemos portanto extrair as seguintes definições:

Em que ‘E’ é a população empregada/ocupada, ‘u’ é a taxa de desemprego, ‘φ(phi)’ é a taxa de participação (%) e ‘P(15–64)’ a nossa PIA
Seguindo da equação anterior, ‘U’ é a população desocupada/desempregada, repetimos as notações anteriores do lado direito da equação
‘L’ é a nossa forca de trabalho, a soma de ‘E’ e ‘U’

Essas equações filtram nossa força de trabalho em suas camadas relevantes. Vejamos como essas definições podem ser ilustradas graficamente usandos os dados da PNAD contínua desde 2012 até agora:

Dados IBGE. Aqui, usamos D para definir a população em idade ativa que se encontra fora da força de trabalho, sejam porque são estudantes, desalentados ou simplesmente vivem de renda passiva (oremos)

Com hipóteses razoáveis e um pouco de teoria econômica, podemos projetar o desemprego e o emprego. Vamos começar com as hipóteses primeiro:

Algumas hipóteses básicas para a nossa projeção do mercado de trabalho brasileiro

Aqui, assumimos um decaimento exponencial simples para a taxa de crescimento da população em idade ativa, que replica quase que perfeitamente o comportamento de sua tendência histórica. Para a taxa de participação, assume-se que a economia gradualmente se estabiliza no pico observado pré-pandemia, com 64% da população em idade ativa trabalhando ou procurando emprego.

Com essas trajetórias definidas, a única variável restante para resolvermos a trajetória de ‘E’ e ‘U’ é a taxa de desemprego. Para isso podemos fazer uso da Lei de Okun, que relaciona desemprego com a ociosidade da economia.

Define-se a ociosidade como a diferença logarítmica entre o PIB real e o PIB potencial:

‘y(tilda)’ é o hiato do produto, ‘Y’ o PIB em reais constantes e Y* o PIB potencial na mesma unidade. Podemos extrair esse número dos anexos estatísticos do RTI de Junho/22 Banco Central do Brasil (BCB).

A Lei de Okun pode ser estimada a partir de uma relação econométrica simples entre a taxa de desemprego, um intercepto e o hiato do produto:

Por hipótese 𝜀 é um resíduo do modelo em que E[𝜀]=0. Permitimos certa defasagem temporal de ‘x’ trimestres do hiato do produto na nossa regressão, de maneira a otimizar a correlação entre os dois dados

Se tomamos a esperança incondicional da equação acima, sabendo que ‘E[y(tilda)] = 0’ no longo prazo, temos que ‘E[u] = β0', que representa nosso desemprego estrutural. O desemprego estrutural é aquele que a economia estaciona quando o ciclo econômico se encerra e atinge o famigerado ‘pleno emprego’.

Aplicando nossa Lei de Okun na identidade do emprego ‘E’ e ‘U’, temos nossas equações finais para ambos:

Dada a simplicidade desse modelo, podemos representá-lo de maneira gráfica, tal como abaixo:

Dados IBGE e BCB, sazonalmente ajustados. O gráfico da esquerda ilustra a relação inversa entre o desemprego e a ociosidade da economia, assim como uma certa defasagem usual de um período (aqui medido em trimestres) do hiato para a taxa de desemprego

O ajuste do hiato do produto estimado pelo Banco Central ao desemprego é bastante alto, explicando 94% da taxa de desemprego um período adiante. Fosse possível estimar este hiato de maneira contemporânea, as previsões para o desemprego na economia seriam razoavelmente simples.

O output da regressão mostra que o desemprego estrutural da economia estimado pelo intercepto durante 2012 e 2022T2 é de 9.25%. Esse número não é estático, podendo mudar ao longo do tempo. No entanto, este é o nosso melhor número no momento, o qual assumiremos a economia convergirá no médio prazo e lá ficará.

Podemos finalmente representar integralmente nossa projeção para as diversas camadas do mercado de trabalho brasileiro até o ano que quisermos. Aqui escolhi terminar a projeção em 2030:

Nesta projeção, sairíamos de uma PIA de 173 milhões de pessoas para quase 185 milhões. Destas, as 109 milhões que faziam parte da força de trabalho tornam-se 118 milhões, das quais 107 milhões estariam empregadas, e o restante procurando emprego.

Agora que já encontramos quantidades, vamos tentar projetar os salários dessas pessoas.

Analisando os rendimentos do trabalho

Já para a parte dos salários, vamos voltar a aplicar um pouco de teoria, dessa vez a Neoclássica. De acordo com eles, salários no equilíbrio são resultado da otimização das firmas:

Onde ‘Y*’ é o produto potencial, ‘K’ é o estoque de capital, ‘N’ o estoque de trabalho (que pode ser definido como um ‘(1-E[u])L’, ou seja, a população ocupada na taxa de desemprego estrutural), ‘w’ são os salários reais dos trabalhadores, ‘r’ o custo do capital (uma taxa de juros).

Nesse modelo supersimplificado, a economia é como uma grande fábrica que escolhe sua produção ótima igualando custo a receita marginal tomando preço como um sinal do além. Os salários portanto são determinados pela produtividade marginal do trabalho, isso é, o quanto uma unidade adicional de hora trabalhada traz de receita para a firma.

No entanto, em macroeconomia não conseguimos observar a produtividade marginal, apenas a produtividade agregada média. Faremos então uma aproximação entre as duas:

Assim, trabalharemos com o resultado que os salários da economia precisam estar de alguma forma relacionados no longo prazo com a produtividade média dos trabalhadores.

Ao olharmos os dados, todavia, percebemos que essa relação entre rendimentos e produtividade não é exatamente perfeita. Apesar de andarem próximas, é possível observarmos períodos sustentados de salários acima da produtividade:

Dados IBGE usando as tabelas do CNT, PNADc e IPCA para deflacionar tanto o PIB nominal quanto o rendimento nominal de todos os trabalhos

Faz sentido portanto adotar alguma espécie de estratégia híbrida Neoclássica + Keynesiana para incorporar a dinâmica mais rígida dos salários reais. Para dar conta disso, montei a seguinte forma funcional:

Essa especificação é típica de um modelo de correção de erros (ECM). Aprenda mais sobre aqui

Nessa dinâmica, permito uma rigidez de curto prazo no movimento dos salários reais, caracterizada pelo parâmetro ‘γ1’, assim como impactos cíclicos vindos do hiato do produto sensibilizado por ‘γ2’. Finalmente, imponho um relacionamento de convergência gradual do rendimento do trabalho na produtividade média da economia, representada por ‘γ3’.

Ao invés de estimar o modelo, preferi fazer por calibragem reduzindo a soma dos erros quadráticos entre a previsão condicional do modelo e o dado observado. Já ensinei como se faz isso antes aqui no blog. Encontrei que ‘γ1 = 0.75’, ‘γ2 = -0.2’ e ‘γ3 = 0.1’ se ajustam bem aos dados e oferecem uma projeção consistente.

Para dar uma trajetória exógena para a produtividade do trabalho, adoto como hipótese que o crescimento histórico observado será o seu crescimento futuro a partir deu uma tendência logarítmica simples. Ficamos com este resultado final para os rendimentos e a produtividade:

Dessa forma, temos uma projeção consistente para o salário real médio do brasileiro de forma ancorada a nossa hipótese de crescimento da produtividade do trabalho. Outras hipóteses de crescimento para essa produtividade poderiam ser adotadas, fundamentadas em elementos estruturais como reformas microeconômicas, entre outras. Aquela que observamos no dado macro agregado hoje, no entanto, oferecem pouca margem para se pensar em algo acima de 0.5% ao ano. Agora que eu te dei a equação, você pode brincar com o seu número de crescimento preferido.

Considerações finais

O recente desempenho do mercado de trabalho tem sido razão de bastante otimismo por parte de alguns analistas hoje, mas uma leitura mais imparcial dos dados na verdade mostra que eles são mistos. Essa queda acelerada do desemprego veio acompanhada de uma rápida reversão para baixo da produtividade e dos salários reais, corroídos pela alta inflação.

A bem da verdade a massa salarial real, o produto entre os rendimentos do trabalho deflacionados e multiplicados pela população ocupada, se encontra ainda abaixo do seu pico pré-pandemia.

Honestamente, tenho bastante dificuldade de ser convencido por alguém otimista usando dados de mercado de trabalho como fundamento somente.

Por hoje é isto. Bons estudos a todos e obrigado por chegar até aqui.

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Felipe Camargo
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Written by Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.

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