Macroeconomia em tempo discreto — Analisando a identidade da renda nacional

Felipe Camargo
6 min readOct 13, 2020

Depois de saturar o conteúdo deste blog com bastante material de financas, resolvi fazer uma pausa e falar de algo que faz muito mais parte do meu dia-a-dia, macroeconomia. Há algum tempo venho conversando com colegas de profissao, tanto lecionando quanto trabalhando com macro na prática, sobre o que me parece ser uma grande lacuna no conteúdo programático das aulas de graduacao e pós em macroeconomia: o tempo discreto.

Para os que nao sao tao familiarizados com a nomenclatura, denominamos tempo discreto aquele que conseguimos medir em intervalos claros de tempo — dias, semanas, meses, anos. O tempo discreto contrasta com a ideia de tempo contínuo, onde os intervalos de tempo sao reduzidos a intervalos tao infinitesimais que sua contabilizacao perde o sentido. Enquanto a análise da dinamica em tempo contínuo nos traz a vantagem de permitir o uso de ferramentas como o cálculo matemático, a dinamica em tempo discreto é vantajosa por ser computável, documentável e compartimentalizável. Pra resumir uma conversa longa, o tempo contínuo é uma ferramenta criada pelo nosso cérebro para facilitar contas no mundo real, enquanto o tempo discreto é uma ferramenta útil para análises empíricas com dados documentados.

O que isso tem a ver com a macroeconomia? Bom, praticamente tudo. A macroeconomia dinamica quando ensinada nas grandes escolas de economia mundo afora quase que sempre aborda preferencialmente modelos dinamicos em tempo contínuo. A razao disso é o fato de que o acesso a um computador, a internet e as usuais ferramentas para computar dinamicas em tempo discreto simplesmente nao estavam disponíveis até poucas décadas atrás. A maneira como o conteúdo era ensinado exigia um conhecimento razoável em cálculo, em topologia, otimizacao, análise real, entre outros (nao que ainda nao seja ou que um dia nao serao mais), que facilitam em muito o trabalho do nosso cérebro em extrair intuicoes simples e didáticas de modelos economicos. Há algumas décadas atrás, ensinar macroeconomia em tempo discreto (ou qualquer modelagem dinamica, na verdade) era praticamente proibitivo sem o acesso a computadores.

Hoje, a história é bem diferente. E como tudo em economia, nada vem sem custo. Quando passamos para a mesma macroeconomia na vida prática, analisando dados de PIB, inflacao, desemprego, taxas de juros, estes sempre estarao apresentados em tempo discreto. Caberá portanto ao analista recém-formado saltar da abstracao academica contida no tempo contínuo e entender as nuances por trás dessa mudanca de dinamica. Em tempo discreto integrais sao somatórias, derivadas sao diferencas ou variacoes percentuais, limites sao resolvidos de trás para frente (por inducao retroativa) e a algebra linear aliada a algoritmos passa a ocupar um espaco bem mais relevante que o cálculo tradicional na hora de pensarmos em otimizacao.

Eu nao tenho interesse encher o leitor de informacao com esse texto. No fundo, acredito que o conteúdo é muito melhor absorvido a partir da observacao com exemplos práticos. Feito o ponto de que eu acredito que há uma lacuna do mundo abstrato academico para a prática com dados, farei alguns exercícios em posts tematizados de macro em tempo discreto com o intuito de preencher essa lacuna e ajudar a aproximar mais economistas da vida prática.

Analisando as Contas Nacionais Trimestrais do IBGE

Vamos comecar esse tópico de forma bastante direta olhando para a identidade contábil das contas nacionais:

A identidade contábil pela ótica da despesa é medida pelo Y (PIB) como a somatória do C (consumo das famílias), I (formacao bruta do capital fixo, ou investimento), G (consumo do governo), X (exportacoes) e M (importacoes)

O subscrito ‘t’ na notacao matemática acima é indicativo de que estamos lidando com tempo discreto, ‘t’ é um intervalo de tempo, que neste caso em particular vamos definir como trimestre. Adiante precisaremos lidar com variáveis em diferentes momentos (‘t-1’, ‘t+1’, ‘t+n’ para qualquer n enquanto número inteiro), mas sempre respeitaremos a medida discreta de ‘t’ intervalos trimestrais de tempo.

Vamos agora entao olhar os dados. O leitor pode acompanhar a licao seguindo os passos a seguir, baixando na tabela do IBGE os valores encadeados da equacao em valores constantes e ajustados sazonalmente dos valores da equacao acima de 1996 até 2020T2. Conforme a tabela a seguir.

Em um exercício algébrico inicial, vamos aprender a computar e em seguida analisar as contribuicoes ao crescimento de cada um dos componentes do gasto publico ao longo da série que nos é disponibilizada pelo IBGE. Para isso, faremos algumas transformacoes algébricas em nossos dados:

Partindo da equacao inicial, temos:

Subtraindo o quarto lag (mesmo trimestre do ano anterior) de cada um dos dados, ficamos com:

Vamos definir essa diferenca interanual com um sinal de delta, pra facilitar a notacao:

Agora vamos dividir ambos lados da equacao pelo PIB a precos de mercado, de novo em seu quarto lag:

Agora chegamos a uma equacao interessante. Podemos ver que a taxa de crescimento do PIB pode ser decomposta pelas diferencas interanuais de um dos seus componentes da ótica da despesa e ser facilmente somado. Vamos definir essa decomposicao da taxa de crescimento de contribuicao, mudando a notacao da seguinte forma:

As letras mínusculas dos componentes da demanda serao aqui definidos como a respectiva contribuicao de cada componente ao crescimento do PIB para cada período ‘t’.

Aplicando essas operacoes nas contas do IBGE, podemos obter os seguintes dados, ilustrados pelo gráfico abaixo.

Decomposicao do crescimento do PIB brasileiro pela ótica da demanda

Neste gráfico, podemos analisar nao somente a história dos últimos 20 e poucos anos de crescimento da economia brasileira, como conseguimos também abrir cada componente da demanda por trás deste crescimento. Facilmente notamos que o consumo das famílias (c) é o principal driver de crescimento da economia brasileira, mas isso é uma característica amplamente esperada visto o tamanho da sua participacao total no PIB (totalizando quase 2/3 do produto). Por outro lado, é possível notar como as contribuicoes ao crescimento por parte do investimento (i) foram muito mais tímidas desde a crise de 2015, fator bastante sintomático da lenta recuperacao observada na economia brasileira desde entao; Sem investimento e sem capital, a recomposicao do mercado de trabalho e a retomada do emprego ficou bastante dificultada, pesando sobre a geracao de renda e consumo futuro na economia.

O leitor atento deve ter notado que o gráfico possui uma variável a mais nele, que nao é observável na base de dados que baixamos do IBGE. Esse dado é o resíduo da identidade do PIB (y-(c+i+g+(x-m)), frequentemente denominado como ‘variacao dos estoques’. Esse item incorpora tanto uma conta que o IBGE nao divulga a valores constantes, somente correntes (nao deflacionados), e também as diversas discrepancias estatísticas do uso de deflatores únicos para cada um dos componentes da ótica da despesa (onde o deflator do PIB nao é igual a composicao dos deflatores do consumo das familias, do governo, do investimento e assim por diante). Essa é mais uma daquelas diversas ‘surpresas’ que só quem trabalha com o dado na prática vai conhecer e saber tratar. Cobrir esses detalhes também será do proveito deste material que quero compartilhar por aqui.

Espero que este post tenha dado um gostinho do que significa a macroeconomia na prática, isto é, aquela feita em tempo discreto, com auxílio dos dados. Ela de nenhuma forma é um material substituto ao conteúdo ensinado e aprendido na academia, mas é sem dúvida uma lacuna que só pode ser preenchida pelas disciplinas aplicadas, tanto em falta nos currículos academicos hoje em dia, mesmo nas mais renomadas escolas de economia.

Revisitarei esse conteúdo algumas vezes mais para frente. De momento fico por aqui.

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Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.