Decompondo índices de preço ao consumidor

Felipe Camargo
9 min readNov 30, 2022

--

O post de hoje é um tutorial. Irei do básico ao avançado passando por intuições simples sobre como um índice de preço é construído, o que ele mede na prática e como analisá-lo no detalhe. Por último, apresento a minha maneira de decompor a inflação em contribuições de seus respectivos itens/subgrupos usando o índice oficial de preços ao consumidor brasileiro (o famigerado IPCA).

Construindo índices de preço

Um índice de preço é um conceito bastante abstrato para a maioria das pessoas. Na prática, ele é uma maneira de se agregar produtos de quantidades diferentes (porém padronizadas) de forma transparente e organizada. Um índice de preço pode ser (nem sempre é) representado pela seguinte fórmula:

P(t) sendo o índice de preço, o somatório dos P(i,t)’s que representam o preco do bem ou servico ‘i’ no período ‘t’. Para evitar que a coisa fique abstrata, ‘i’ pode ser simplesmente ‘arroz’ e ‘t’ um dado mês em um ano qualquer, sendo ‘t+n’ um período ‘n’ meses a frente de ‘t’. Esses P(i,t)’s sao multiplicados pela participação w(i,t) deste bem ou servico na renda de uma família representativa da população em questão (para ficarmos no mesmo exemplo, quanto em média uma família gasta da sua renda em arroz). O índice é tão somente uma média ponderada dos preços de diversos itens cujos pesos são calibrados para representar o consumo mais frequente em uma dada população. A soma dos w(i,t)’s de uma cesta de consumo é igual a 100%, refletindo o gasto total de uma família.

Para estimar a participação que cada bem/serviço possui no orçamento familiar, os escritórios nacionais de estatística de cada país são responsáveis por conduzir periodicamente pesquisas de orçamento familiar que mapeiam quanto uma família representativa de uma determinada região ganha em média e de que maneira essa renda é consumida. No Brasil, essa pesquisa é conduzida pelo IBGE.

A fim de tentar garantir que o orçamento familiar estimado é representativo do consumo, somente bens e serviços finais são utilizados na amostra. Isso significa que a pesquisa estatística exclui insumos intermediários utilizados em etapas produtivas, de forma a evitar alguma dupla contagem. Um exemplo de dupla contagem seria considerar um peso para o barril de petróleo e adicionar ao orçamento familiar um peso para a gasolina refinada. O barril é claramente um bem cru intermediário que é consumido na forma final de gás de cozinha (GLP), gasolina, diesel, gás natural, borracha, etc. Portanto o peso que o barril de petróleo pudesse vir a ter ao consumidor é distribuído entre os produtos finais gerados por ele enquanto insumo.

Para que seja possível agregar conjuntos distintos de bens e servicos em um mesmo índice (imagine a dificuldade de se comparar 1 kg de arroz, 330ml de cerveja, cabelereiro e TV a cabo por assinatura), a solução prática é guardar as quantidades iniciais de cada bem/servico desde o início da série histórica constantes, de forma que cada item seja somente a sua participação na cesta de consumo de cada família. Os preços são então encadeados usando um ano base, tal que o preço neste ano seja igualado a 100.

A inflação então é calculada como a variação percentual desse índice.

A notação ‘π’ para representar inflação é a tradicional aos macroeconomistas

Para não deixar a explicação ficar muito abstrata, vamos olhar um exemplo prático. Imagine um país em que as famílias possam consumir somente nove itens diferentes com a sua renda: arroz, cerveja, picanha, transporte público, gasolina, corte de cabelo, cinema, restaurante e TV a cabo por assinatura. Chutando valores em P(i,t) e w(i,t) para cada um desses itens ao longo de seis anos, chegaríamos ao seguinte cálculo para a inflação ao consumidor desse país:

Exemplo fictício de um índice de preços ao consumidor

O que índices de preço medem

A partir do exemplo fictício anterior, quatro observacoes sao importantes para entendermos tudo que está acontecendo ao mesmo tempo em um índice de preço.

Primeiro, perceba como as quantidades de cada bem são padronizadas desde o início da coleta dos dados e mantidas constantes ao longo do período. Em segundo lugar, sua participação no orçamento familiar se alterou ao longo do anos de apuração dos dados, apesar dessas quantidades de cada bem/serviço terem se mantido constantes.

Essa alteração na participação do orçamento familiar reflete mudancas nas preferências de consumo ao longo do tempo, seja porque essas famílias enriqueceram (efeito-renda) ou porque os preços relativos incentivaram uma mudança no padrão de consumo (efeito-substituição). Um exemplo de efeito-renda é um chefe de família que foi promovido no emprego optar pela instalação de um ar condicionado em casa ao invés de comprar um ventilador portátil. Um exemplo de efeito-substituição pode ser a troca do consumo da batata-inglesa pela mandioca, em razão de uma hipotética boa safra de mandioca que reduz o seu preço, incentivando o consumo desta em detrimento ao da batata-inglesa. Apesar de sabermos que esses efeitos geram mudancas nas preferências do consumidor, não é possível inferir somente a partir dos dados coletados em um índice de precos qual efeito está causando uma dada mudança no peso do bem na cesta de consumo.

Uma terceira observação é a pouca ou nenhuma menção sobre a formação dos preços finais de cada bem, nem as correlações associadas entre os próprios itens. Isso significa que o índice, por ser uma medida de precos finais ao consumidor, não guarda de maneira explícita as razões para a sua alta. No máximo, dada a proximidade das cadeias de produção de alguns itens, é possível inferir que insumos comuns sejam a razão por trás da alta de determinados subconjuntos da cesta do consumidor. Isso é bastante comum com preços de combustíveis que usam o preco internacional do barril de petróleo como insumo. Se o barril no mercado internacional encarecer, é bem provável que a gasolina, o diesel e o gás de cozinha (GLP) encareçam na sequência. Preços de combustíveis que, subsequentemente, afetam o custo do frete e espalham sua alta para os demais produtos da economia expostos ao custo do transporte. O índice não vai te contar essa história sem que você conheça a forma com que esses itens de consumo estão associados entre si no processo produtivo e no repasse de preços ao consumidor.

A quarta e última observação é o de que apesar do índice ser construído a partir de preços observáveis, seus valores-índice reportados só refletem a variação acumulada em relação ao ano base. Para encontrar o preço exato de cada bem em um índice de precos, é preciso descobrir o preço de referência e descontá-lo pela variação relativa acumulada dos valores do seu respectivo índice ao longo do tempo. Na prática, isso não costuma ser algo viável. O índice de preço portanto não é uma medida para cada preço disponível, mas sim uma medida de preços relativos a si mesmos ao longo do tempo. Essa é provavelmente a razão das pessoas terem tanta dificuldade de compreendê-lo.

Para resumir tudo que foi explicado nesta seção, índices de preço (não) refletem:

  1. As preferências de consumo de uma família representativa a partir do quanto de sua renda é dispendido em cada item da cesta de consumo sao refletidas nos índices. No entanto, as razões pelas quais as preferências mudam ao longo do tempo não estão explícitas;
  2. Índices de preço capturam mudanças de preço ao longo do tempo, mas não demonstram como elas são formadas nem os efeitos indiretos associados de certos preços com outros. O efeito direto da gasolina em um índice de preços pode ser medido pela variação de seu preço e o peso do bem na cesta de consumo das famílias. No entanto, o efeito indireto que a gasolina traz aos demais itens da cesta de consumo (por exemplo, no custo de frete de alimentos frescos) fica por conta do analista. Quer moleza senta num pudim;
  3. Índices de preço mensuram mudancas de preços em relação a si mesmos ao longo do tempo. Sem conhecer o preço de referência utilizado para um determinado bem/servico, não é possível acompanhar o preco exato de tal item ao longo do tempo.

Apesar de tantas limitações, os índices de preço são a melhor maneira disponível hoje para medir mudanças no custo de vida das famílias. A harmonização de índices de inflação é um investimento importante por parte dos órgaos multilaterais, de maneira a tornar possível a comparação entre cestas de consumo e derivar, a partir delas, o poder de compra e a riqueza dos países.

Decompondo a inflação brasileira

Nesta seção final, apresento a minha maneira de decompor a inflação em contribuicoes de seus respectivos componentes. Usarei o exemplo do IPCA. Minha desculpa para apresentar umas continhas e deixar o post menos “blá-blá-blá” (cruzes). Um índice de preços tradicional pode ser definido da seguinte maneira:

A inflação, por consequência da sua definição anterior, é:

Definindo o conceito de “contribuição à inflação” usando a variável π(c), temos:

As contribuições à inflação quando somadas são iguais a inflação do índice de preco

No entanto, a decomposição anterior não é a mais agradável de se trabalhar, por um motivo importante: para preços constantes, mudanças de peso trariam contribuições positivas ao índice. Essas contribuições são indesejáveis na prática porque podem trazer mudanças abruptas caso os pesos sejam alterados de forma relevante (coisa que acontece em razão de mudanças metodológicas). Para mitigar o efeito que os pesos trazem no índice, sugiro alguns passos adicionais com um pouco de “matemágica”.

Primeiro, subtraímos dos dois lados um termo que podemos chamar de “ajuste de peso”.

O “ajuste de peso” subtraído em vermelho de cada lado da equação é dado pela soma da diferença de cada peso no índice ajustada pela razão entre o índice do item com peso em questão e o índice cheio

Podemos então a partir da definição de “contribuição” que fizemos anteriormente, definir uma “contribuição peso-ajustada”, denotada por π(c,w-adj). A contribuição peso ajustada é igual a contribuição tradicional menos o “ajuste de peso”.

Aplicando a distributiva de P(i,t-1)/P(t-1) em w(i,t) e w(i,t-1):

Chegamos em uma forma final que permite amassar todas as variações de peso em um único termo, o que nos permite preocuparmos somente com as variações de preço diretas.

Em preto temos as contribuições de cada um dos precos que compõem o índice, e em vermelho os “ajustes de peso”

A principal vantagem dessa maneira de decompor a inflação é que amassamos as variações de peso em um componente que tende a um número muito pequeno, uma vez que o índice é por definição uma média ponderada desses pesos que somam a unidade ao fim e ao cabo. Isso nos permite abrir os dados do IPCA e fazer gráficos como este:

Dados: IBGE. Itens selecionados de maneira puramente arbitraria (ou não, leia como preferir)

Em contraste com outras maneiras de decomposição da inflação, esta maneira é robusta (produz resíduo infinitesimal próximo de zero) para qualquer frequência de variação escolhida, seja ela computando taxas anuais, bianuais, trimestrais ou mensais. O céu é o limite. Para chegar nessa decomposição usei alguns manuais de referência (veja este do FMI ou este do Eurostat). Para ser franco acho que o método empregado aqui é mais simples e intuitivo, podendo ser extrapolado para diferentes frequências de atualizações de pesos também e diversos índices de outros países. Repliquem aí e me contem depois.

Considerações finais

Comecei este texto na esperança de fazer um tutorial curto mas acabei escrevendo uma bíblia. Peço a devida licença poética aos leitores pelo detalhamento excessivo sobre índices de preço, quem é da área vai pensar que me excedi na trivialidade. Digamos que o post de hoje buscou abranger um pouco mais o público-alvo para aproximar melhor os entusiastas e novatos. Com essa desculpa, eu me privo de precisar reescrevê-lo.

Aos sabichões chatos, antecipo que optei deliberadamente por não comentar sobre os demais índices de inflação que não são por Laspeyres, com definições diferentes (Lowe, Paasche, Fisher, entre tantos outros). A ideia do post era levar o assunto adiante, não escrever uma tese de doutorado sobre o assunto. Caso interesse, já apliquei essa decomposição para 18 outros países emergentes, funcionando razoavelmente bem mesmo para os índices que usam outras definições, nunca tendo a contribuição dos pesos atingido valor maior do que 15% da variação total do índice. Experimente por conta própria se quiser.

Vou deixar a planilha do post de hoje aberta para todos, neste link. Bons estudos e obrigado por chegar até aqui.

--

--

Felipe Camargo
Felipe Camargo

Written by Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.

No responses yet