Calibragem em macroeconomia

Felipe Camargo
6 min readNov 21, 2021

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Uma das grandes dificuldades da macroeconomia, tanto teórica quanto prática, é o problema da identificacao. Por causa desse problema, deriva-se várias outras dificuldades técnicas para a aceitacao de modelos e portanto também dos resultados de um determinado modelo macroeconômico estimado.

Vamos tentar entender brevemente o porquê: modelos macro sao geralmente compostos por um sistema de equacoes que precisam valer simultaneamente, onde os erros de predicao podem ser correlacionados entre si para as diferentes variáveis de interesse. Para a coisa nao ficar muito abstrata, vamos olhar para um modelo bastante parecido com aqueles usados pelos bancos centrais para analisar política monetária:

Aqui, definimos y como o hiato do produto (nossa medida de sobreaquecimento da demanda agredada), π como a inflacao, r como a taxa de política monetária (no caso do Brasil, a taxa Selic) e ϵ é a nossa taxa nominal de câmbio contra o dólar

Todos os epsilons (ε) de cada uma dessas equacoes estao intimamente relacionados: um erro de previsao no hiato do produto vai afetar nossa previsao de inflacao, logo de política monetária, logo da taxa de câmbio, e esse erro, em razao da endogeneidade entre as variáveis, pode se acumular ao longo do tempo.

Os dados também nao ajudam, uma vez que as séries de tempo de interesse dos macroeconomistas estao sempre lotadas de choques (situacoes idiossincráticas inesperadas) que poluem bastante a informacao procurada pelos modelos usuais. Imagine que um problema de manutencao numa grande plataforma de petróleo na Rússia afete o preco do petróleo, que afeta o custo dos combustiveis no Brasil, gerando inflacao. É do interesse do pesquisador/analista capturar esse tipo de dinâmica em seu modelo ou nao? Esse tipo de pergunta vai estar associada ao processo de especificacao das equacoes do modelo em questao. Se é do propósito do seu modelo considerar/ignorar tais fatores, é uma escolha específica do analista. Se este nao quiser capturar tal dinâmica, ele pode simplesmente desconsiderar por exemplo o efeito das commodities na sua previsao de inflacao (expresso no sistema acima pela variável π(imp)), assim, todos os movimentos associados a precos de commodities serao capturados exclusivamente por ε(π).

Mas voltemos ao ponto de interesse. Identificacao é um problema que afeta processos de estimacao das médias e erros-padrao dos coeficientes do nosso sistema de equacoes, e esta é uma das principais motivacoes por trás do uso da calibragem, que é o tema do post de hoje. A calibragem consiste basicamente em assumir valores para os parâmetros c(n) do modelo, a partir de alguns critérios sem uma ordem de importância específica: a) Respeitar os resultados mais aceitos de uma teoria para a relacao entre as variáveis; b) Permitir um ajuste razoável aos dados em uma janela específica de tempo; c) Oferecer propriedades preditivas desejáveis; entre outras. Muitas vezes, esses critérios vao concorrer entre si, e sacrificar um em prol do outro entra mais uma vez no rol de julgamentos a ser considerado pelo pesquisador/analista.

A vantagem da calibragem é que ela é um acordo entre cavalheiros(as), o que pode parecer um pouco frustrante para o jovem adulto empolgado com a possibilidade de fazer “hard-science” em ciências sociais. Há bastante discricionariedade no processo de pesquisa, mas isso nao faz dela menos valiosa. É muitas vezes mais importante ter clareza e ser transparente naquilo que se faz do que descobrir um resultado a partir de um instrumento ultrasofisticado porém pouquíssimo comunicável e verificável entre pares.

Vamos aproveitar o tópico para fazer a calibragem do modelo macro exemplificado acima para o Brasil. Voltemos a ele:

Nosso modelo pretende determinar trajetórias futuras para o hiato do produto, a inflacao, a taxa Selic e a taxa de câmbio nominal

Calibrar todas essas equacoes é um processo bastante semelhante, que pode tomar tempo, por isso, ilustrarei algumas etapas da calibragem da Curva de Phillips (PC). Primeiro é preciso definir nossa medida de inflacao, aqui optei por usar a variacao trimestral sazonalmente ajustada anualizada, assim posso compara-la a cada período com a expectativa e a meta de inflacao do período.

Fonte: BCB. A meta de inflacao apresentada aqui foi ajustada para considerar a gestao Tombini, conforme este post

Agora, vamos recuperar a equacao da Curva de Phillips, partindo de valores quaisquer para nossos parâmetros c4, c5 e c6, alterando-os marginalmente para comparar os resultados:

Aqui, MAD é o desvio absoluto mediano entre o dado observado e o estimado pelo modelo. MAD é uma medida de erro análoga ao erro quadrático médio, usado nas regressoes por mínimos quadrados ordinários

Dessa forma, podemos perceber que o processo de calibragem pode ser muito semelhante a um processo de estimacao de coeficientes através da minimizacao de erros quadráticos tradicionalmente utilizado em econometria clássica (característico da estimacao por OLS ou MLE). A diferenca é que aqui vale tudo: o analista tem a liberdade de escolher se prefere um modelo que se ajusta melhor aos dados em um determinado período do que em outro, ou até mesmo ignorar a história e argumentar que a série de tempo mudou/mudará de regime. A calibragem só requer um acordo, que pode ser razoável ou nao. Na mao de um economista experiente pode ser muito mais útil do que um modelo tradicional ajustado aos dados históricos.

Por humildade (nao me considero um economista capaz de julgar se os dados mudaram de regime ou nao neste momento), optei pelas equacoes com o melhor ajuste histórico aos dados pelo critério de desvio absoluto mediano que escolhi. Assim, nosso modelo toma a seguinte estrutura:

Com base nestes parâmetros para esta especificacao, acrescidas de algumas hipóteses para as trajetórias futuras das variáveis exógenas, podemos usar este modelo calibrado para projetar o futuro das nossas variáveis endógenas:

As projecoes sao razoavelmente parecidas com aquelas esperadas pelo Boletim Focus mais recente, e inclusive poderiam se aproximar até um pouco mais a depender dos coeficientes utilizados para algumas equacoes específicas, como c4 (que dá o caráter inercial da inflacao para a Curva de Phillips) ou o c8 (que captura a sensibilidade do banco central aos desvios da expectativa de inflacao em relacao a meta). Há espaco para melhora nessa calibragem neste aspecto, que vai do sabor/objetivo do analista.

Outra vantagem interessante de se ter um modelo estrutural como este é a sua capacidade de criacao de cenários a partir de contrafactuais. Suponha que o analista queira estudar o efeito de um choque exógeno nas variáveis modeladas, como por exemplo uma depreciacao cambial e um aumento acima daquele recomendado pela Regra de Taylor na taxa Selic, qual seria o efeito líquido de tais circustâncias? Podemos analisar isso também:

Cenário construído a partir do choque conjunto de uma depreciacao cambial permanente de 10% e um aumento conjuntural adicional de 2% na taxa Selic.

Ou até analisar as diferencas entre os cenários no formato de impulso-resposta:

Aqui vale lembrar que ϵ representa o desvio absoluto em reais, ou seja, um aumento permanente de R$1 por dólar oriundo do nosso choque permanente de 10% após a resposta de todas as demais variáveis ao câmbio

Como tem sido costume aqui no blog, disponibilizarei todos os dados utilizados e a modelagem em uma planilha de Excel no meu Google drive. A planilha também dará conta da fonte dos dados e a traducao das notacoes e variáveis utilizadas que nao tenham ficado claras ao longo do post. Por hoje é isto, bons estudos a todos.

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Felipe Camargo
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Written by Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.

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