A matemática da precificação de ativos — Exemplo com VALE3

Felipe Camargo
8 min readMay 28, 2021

--

Neste post aqui no blog voltarei a falar de financas. Hoje, mais especificamente, vou apresentar o passo-a-passo da demonstracao matematica do modelo mais famoso para fazer valuations rápidos de acoes de empresas listadas na Bovespa, o Modelo de Crescimento de Gordon. Vamos aproveitar o contexto para fazer um valuation rápido das acoes da VALE3.

O Modelo de Crescimento de Gordon é um equacao que simplifica o processo de contabilizacao do valor intrínseco de uma acao. O valor intrínseco de um ativo é fundamentalmente determinado pelo fluxo de rendimentos que esse ativo proporciona descontados a valores do dia de hoje. A taxa pela qual descontamos esse fluxo de rendimentos precisa levar em consideracao o custo de oportunidade de investir o dinheiro (portanto a utilidade que eu teria gastando esse dinheiro hoje, ou investindo em outra coisa), o risco associado a esse investimento e a rapidez com a qual eu posso me desfazer desse investimento caso eu mude de ideia (liquidez).

História longa resumida em uma equacao pequena e muito útil:

Modelo de Gordon. “P” é o preco do ativo, “D” é o fluxo de dividendos (proventos) pagos aos detentores deste ativo, “g” é a taxa representativa do crescimento desse fluxo de dividendos futuros e “r” a taxa de desconto que contempla todas características mencionadas anteriormente.

Logo, temos que para saber o preco justo de uma acao, precisamos saber quanto de dividendo é pago atualmente, quanto esse dividendo vai crescer no futuro e qual é a taxa que a maioria dos investidores está disposta a descontar esse ativo levando em conta seu risco para precifica-lo. Toda a dificuldade de se encontrar o valor repousa em estimar crescimento futuro e taxa de desconto, o resto é dado público.

Mas como uma equacao tao pequena pode resumir tantas coisas? Bem, vamos comecar do comeco, da demonstracao matemática desta fórmula.

Demonstrando o modelo

Tudo comeca com as hipóteses, e no caso deste modelo, sao tres: 1) O crescimento dos dividendos seguirá uma taxa constante; 2) O mesmo vale para a taxa de desconto; 3) Empresas nunca morrem e pagam dividendos até a perpetuidade (até o fim dos tempos).

Definidas as hipóteses, sabemos que o valor de um ativo é a soma de todos os seus fluxos de caixa futuros:

Aqui, n é um número qualquer. Dt podendo representar o último fluxo de dividendos pago ao longo de um determinado período (geralmente um ano).

De cara, notamos que o preco de um ativo segue aquilo que conhecemos como uma progressao geométrica, uma sequencia ordenada de termos que seguem uma razao comum, que nesse caso é (1+g)/(1+r). Vamos portanto seguir o passo-a-passo da demonstracao da soma dos termos de uma progressao geométrica:

Vamos definir a equacao original como equacao 1
Agora, vamos multiplicar ambos lados da equacao 1 por (1+g)/(1+r).

No passo seguinte, subtrairemos a equacao 2 da equacao 1:

Como muitos termos da equacao anterior coincidem, a subtracao de ambos os lados das equacoes elimina quase todos os termos de soma, com excecao dos que ficaram acima.

Colocando Dt(1+g)/(1+r) em evidencia do lado direito:

Agora isolando Pt do lado direito:

Aqui, faremos uso da terceira hipótese que definimos no início do nosso modelo. Empresas vivem para sempre e pagam dividendos perpetuamente, logo n=∞. Como usualmente taxas de desconto (r) sao maiores que (g), entao (1+g)/(1+r)<1 portanto ((1+g)/(1+r))^n tenderá a zero:

Se rearranjarmos os termos e fazendo um truque de multiplicar e dividir tudo por (1+r), teremos:

E por fim, chegamos a nossa equacao original, do Modelo do crescimento de Gordon:

Uma equacao elegante que usa somente hipóteses razoáveis para ser demonstrada.

Aplicacao para VALE3

***Isto nao é uma recomendacao de investimento***

Para aplicar o modelo na avaliacao de preco da VALE3, podemos comecar olhando as informacoes básicas que sao obtidas pela internet. Na secao de relacao com investidores do seu site oficial, a Vale informa abertamente quanto pagou de dividendo e juros sobre capital proprio (proventos) por acao no ano passado. O total de proventos, líquidos de impostos (JCP sofrem 15% de retencao de IR na fonte), pagos em 2020 foi de R$ 6.39. Logo, temos que Dt= 6.39. Vamos prosseguir com as demais variáveis.

Para a taxa de desconto usaremos o usual método do CAPM. Nao me estenderei muito sobre ele neste tópico, já que nao é exatamente o propósito deste post em específico. A ideia é que a taxa de desconto deve ser funcao de um acréscimo ao retorno livre de risco que é funcao do risco relativo de determinado ativo em relacao ao índice de mercado. Em uma equacao, este é o CAPM:

Onde r(A) é o retorno requerido/esperado para se investir no ativo A, r(f) é um retorno livre de risco representativo para o horizonte pretendido pelo investidor, normalmente um título público de prazo de pelo menos 10 anos, β(A) é a medida de risco relativo e r(m) o retorno de um índice de mercado, o IBovespa serve

Muitos financistas gostam de estimar o risco relativo através de comparacoes setoriais, brincando de descontar e incluir níveis diferentes de alavancagem. Eu prefiro ver o risco relativo observado, entao resolvi estimar esse β(VALE3) usando dados observáveis:

Aqui, estamos usando a NTN-B 2035 como taxa livre de risco. O β encontrado é de 0.866, o que significa que as acoes da VALE3 possuem a vantagem de se mover em média menos do que o IBovespa, um valor esperado dado que a empresa possui uma boa parte da sua receita em dólares, protegida do mercado doméstico.

Temos um β. De acordo com o site do Tesouro Nacional, a NTN-B 2035 hoje paga uma taxa de juros real aproximada de 4.25% a.a., como quero trabalhar com retornos nominais, adicionarei a isto a inflacao. 3% a.a. é a minha premissa de meta de inflacao de longo prazo até 2023. Farei outra hipótese, a de que o mercado exige hoje um premio de risco aproximado de 3% a.a. para investir na bolsa. Este é o valor médio encontrado para o Brasil desde o início da pandemia pelo seguinte site que faz a estimativa para cada país no mundo. Logo, temos:

Aqui, compomos a taxa de juro real com a inflacao de longo prazo geometricamente. A taxa de desconto encontrada é bem próxima de 10%.

Finalmente, encontramos uma estimativa razoável de taxa de desconto. Porém, temos um problema. Essa taxa de desconto varia bastante, e por tres motivos: 1) A taxa livre de risco muda diariamente; 2) O premio de risco que utilizamos é uma estimativa dentre diversas outras, que mudam a depender da perspectiva do tipo de investidor que tem interesse em comprar VALE 3 em questao; 3) Para qualquer que seja o premio de risco estimado/assumido, esse premio de risco varia ainda mais do que a taxa livre de risco diariamente.

Qualquer número na vizinhanca desta nossa estimativa seria perfeitamente plausível para descontar os fluxos de proventos pagos pela VALE3. Logo, talvez faca mais sentido trabalhar com intervalos de plausibilidade do que com valores fixos. Faremos isso mais para frente.

O último parametro que nos resta estimar é a taxa de crescimento “g” do fluxo de dividendos da empresa. Esse é um número bastante difícil de estimar, porque envolve fazer premissas para a empresa em sua perpetuidade. Algumas informacoes sao úteis, no entanto:

  1. A Vale SA é uma empresa madura de grande porte do ramo de mineracao. Em razao disso, é comum classificarmos empresas como esta como “empresas de dividendos”, isto é, empresas que já deixaram de investir em aumentar sua operacao (portanto seu faturamento), para pagar dividendos aos seus acionistas e fazer a manutencao do seu atual estoque de capital
  2. A Vale é uma empresa exportadora de commodities de minério, o que portanto torna sua receita quase que totalmente indexada ao dólar. Se no longo prazo espera-se que o cambio brasileiro se deprecie, esta depreciacao vai se tornar um aumento de receita em reais para a Vale.

Com base nisso, trabalharei com duas hipóteses simplificadoras: a Vale nao vai vender uma unidade a mais de minério, produzindo sempre o mesmo para sempre, e o preco de sua commodity tenderá a seguir o mesmo valor de hoje a dólares constantes (descontados da inflacao americana). O crescimento da receita da Vale será entao muito próximo do diferencial de inflacao brasileiro versus americano, uma vez que essa é a depreciacao estrutural esperada pela taxa de cambio brasileira, baseada no poder de compra de ambos países. Esse diferencial de inflacao é hoje aproxidamente 3% (meta de inflacao brasileira) menos 2% (meta de inflacao americana) = 1% ao ano. Como nossa taxa de desconto foi estimada em termos nominais, precisaremos voltar com a inflacao para essa taxa de crescimento real dos dividendos, e fechamos entao com um crescimento nominal para a perpetuidade de 4% ao ano.

Essa conta no entanto, assim como no caso da taxa de desconto requerida que estimamos, está fortemente sujeita a riscos e incertezas. Ninguém garante que o preco dos minérios que a Vale vende se manterao estáveis, ou que a Vale de fato nao aumentará o volume de producao de minérios eventualmente, ou que os custos de producao subiriam mais do que proporcionalmente a receita. Faz sentido entao trabalharmos com outro intervalo de plausibilidade para a taxa de crescimento “g”, e é o que faremos a seguir.

Historinha de lado, vamos apresentar alguns números para o valor intrínseco de uma acao VALE3, condicionados pelo intervalo de plausibilidade para “r” e “g” estimados na tabela resumo abaixo.

Com esse resultado, notamos que a acao está sendo negociada hoje a um valor muito próximo das nossas estimativas centrais de valor intrínseco, podendo estar ou nao abaixo do seu valor justo a depender de quais intervalos para “g” e “r” confiarmos mais em determinado momento.

**Isto nao é uma recomendacao de investimento***

Consideracoes finais

Importante mencionar alguns detalhes a respeito desta análise:

  1. Na vida real do mercado financeiro, a maior parte dos analistas de acoes de instituicoes financeiras acompanham o comportamento destas empresas no dia-a-dia com informacoes da mais alta frequencia. Esta, dentre milhares de outras análises, sao levadas em consideracao na hora de se tomar uma decisao de compra/venda de uma determinada acao listada em bolsa.
  2. Existem métodos mais rigorosos de se fazer um valuation de uma empresa. O Modelo de Gordon possui extensoes, e é, muitas vezes, combinado com uma projecao de resultados financeiros durante um periodo inicial (geralmente os primeiros 5 anos de projecao), antes de ser aplicado para a perpeituidade dos anos seguintes. Este método é mais apropriado porque permite ao analista acomodar mudancas conjunturais aos resultados da empresa, e esses primeiros anos de fluxo possuem um grande peso no seu valor intrínseco final, uma vez que sao descontados por um futuro mais próximo.
  3. O intuito deste post é didático e de inspiracao para que mais pessoas compartilhem conteúdo semelhante com transparencia. Precificar ativos é um exercício que nao possui limites em termos de simplificacao, elegancia, acurácia e precisao. Vejo como um passatempo divertido.

Por hoje fico por aqui.

--

--

Felipe Camargo
Felipe Camargo

Written by Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.

No responses yet