A armadilha do auto-interesse e a medida de todos os homens

Felipe Camargo
3 min readNov 27, 2020

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Perguntas ruins são aquelas que nos instigam a pensar a partir de falsos paradigmas, ou que sugerem respostas impossíveis. Elas não são raras, até porque são a base da retórica na filosofia moral popular e carregam conotações políticas bastante auto-evidentes. É possível que este tema tangencie diversos vícios de pensamento oriundos dessa prática, apesar de somente direcionado a um em específico: o do Egoísmo Racional.

“Existe atitude destituída de auto-interesse?”

O caráter retórico dessa pergunta é ilustrado no simples fato de que uma tentativa de resposta, seja ela meramente cética à sua generalidade, já sugeriria maiores evidências para quem parte do pressuposto de que agir de forma altruística é impossível. A conclusão está implícita na premissa, o que não é uma surpresa, porque essa é mais uma daquelas perguntas cujos instrumentos para uma resposta definitiva simplesmente não existem. Não somos capazes de extrair dados imparciais e destituídos de juízo do pensamento de cada indivíduo. Limitar-se a tentar responder tal pergunta nos restringe a reconhecer que nada pode ser dito a respeito das faculdades mentais internas de cada pessoa, pois nao podemos acessa-los.

Exceto que não somos feitos exclusivamente do nosso auto-interesse. Tão logo percebemos que somos dotados da capacidade de reconhecer a virtude de atos heroicos de grande sacrifício, da persistência sem resultados e da consistência acima de oportunismo. Embora seja perfeitamente razoável encaixar tal narrativa com a ideia de se agir por honra ou por homenagem a um ídolo histórico ou religioso, não é exatamente a finalidade da atitude que se mostra louvável, mas sobretudo sua forma. Enquanto em um exemplo hipotético dois indivíduos se mostram extrair o mesmo prazer em diferentes posturas de vida, um sustentando seu vício por álcool, outro cuidando de sua avó doente, é óbvia a distância da qualidade moral em suas atitudes. Logo, independentemente de sermos escravos do nosso ego, do nosso auto-interesse, ainda há uma clara margem para se discutir a nobreza dos meios que escolhemos para satisfazer ao ego.

E como importam os meios? Há boas razões para compensarmos neles toda a dificuldade que temos em julgar os bons fins. Se o dever de um ser humano é o de estudar para superar seus mestres, gozar dos melhores prazeres que a vida tem a oferecer ou ser a pessoa mais amável possível, talvez isso exija mais do que sejamos um dia capazes para responder. Mas mesmo feitas escolhas aleatórias pelos bons fins, seus meios, principalmente os ruins, estão pacificamente mapeados: não produza desconforto sem razão justificável, não manipule os outros para fins pessoais, não abandone incapazes, não seja um hipócrita. Somos ao menos imbuídos de certos valores que nos permitem algumas certezas sobre o que não são recursos viáveis para os fins que nos propomos a perseguir.

Um pouco além, e eu diria ser este o ponto mais sensível do argumento construído até agora, é a ideia de que o bom meio é aquele que nos aproxima do que entendo ser a essência, ou pelos menos aquilo nos torna distintos, em nossa condição de humanidade.

Dotados de razão, manipulamos até mesmo as impressões que temos sobre a realidade: transformamos dor em motivação, dificuldade em bravura, orgulho em honra. Herdamos a capacidade de encontrar a via mais nobre dentre os mais selvagens recursos que a natureza nos dispos. Sabemos diferenciar vícios de virtudes na imensa maioria das vezes. Apesar disso, facilmente falhamos, deixamos a desejar, pior: alimentamos uns aos outros a impressão de que somos tão somente animais colocados neste mundo somente para satisfazer nossos próprios apetites. Com isso nos tornamos meras faíscas daquilo que poderíamos ter sido.

A virtude consiste em ter poder mas não usar dele para se conseguir o que quer: ser belo mas não explorar da beleza por maior atenção, ser rico mas reconhecer seu privilégio com humildade e devoção aos desprivilegiados de pior sorte, conhecer mas somente usufruir do conhecimento que proporcione benefícios a todo o conjunto, com isonomia. Significa lutar, todos os dias, contra a vaidade. A virtude consiste em não gozar daquilo que se tem, mesmo que duramente conquistado, em respeito aos que tentaram e não conseguiram. Afinal, quem é você pra saber o que você realmente merece? A capacidade de conquistar sem usufruir é a medida de todos homens.

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Felipe Camargo
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Written by Felipe Camargo

Applied macroeconomist. I look for simple model solutions to real world problems. I also write about finance and casual philosophy.

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